terça-feira, 19 de maio de 2009

Nomadismo Comportamental


Dedico a todos os velhos amigos inesquecíveis que hoje me fazem fingir, reciprocamente, que não os conheço.


Desde pequeno eu sempre senti que o meu espírito era indubitavelmente contrário à manifestação mais propalada e executada entre os supostos sabichões que dizem “que fazem bico porque pensam”, mas que na verdade fazem bico porque o bico talvez seja o único antídoto, certamente é o mais acessível, para atenuar a triste constatação que a fotogenia é um privilégio daqueles que não precisam pensar em nada para atrair toda a atenção: Bem-Vindos ao tenebroso universo do Nomadismo Comportamental.
Alex gostava de New Kids On The Block e morava em São Paulo. Eu morava em Guarujá e superestimava quem morava em São Paulo porque isso é o mínimo que se espera de uma pessoa que vive em Guarujá. Viver em Guarujá é uma merda. Ponto. New Kids On The Block também era uma merda mas eu só tinha dez anos. Não venha me dizer que com dez anos você já tava ligado nas ideias do Jello Biafra, escutava Brahms só de cueca ao mesmo tempo em que sorvia uísque escocês com idade para ter Mal de Alzheimer, fazia duas sessões por dia, de 20 minutos cada, de meditação transcendental, usava a sua irmã como interlocutora enquanto incorporava a onisciência de Platão envolvido por um lençol com a estampa do Super Mouse, ignorava astronautas, idolatrava Calígula e sabia que o Sid Vicious havia cagado na boca de uma mina no Chelsea Hotel. Alex tinha doze anos e era uma espécie de guru comportamental para o povinho caiçara. O povinho caiçara era composto por Cadu, Zé Tó, Jussara Gosta de Mulher e Tem Peito de Homem, Fabiano, Nicolas, Eu, Cláudio, Rodrigo, Maurício, Piolhinho e Sydney. Nós todos amávamos New Kids On The Block porque Alex falou que era bom, e porque ele era de São Paulo, e porque nós éramos do Guarujá, e Guarujá é uma merda, assim como Lorena, Peruíbe, Mongaguá, Itapema, São Vicente, Fernando Bonassi, Pet Shop Boys, Cachorro Grande, arte conceitual, filme chinês, brasileiro que gosta de filme iraniano, Largo do Arouche, Bolívia, Márcia Tiburi, A Tribuna, Brito Júnior, Poço de Caldas, Caldas Novas é legal, mas Luis Caldas, não! Exclamação. Ah, o Douglas também fazia parte do povinho. Alex era ruivo, tinha um relógio Casio calculadora para o qual, quando nos mostrou pela primeira vez, fizemos “UAU!”. Douglas morreu de catapora e, por respeito à sua alma, não farei nenhuma crítica à sua conduta “sovina”. Foi mal. “Uau” é uma reação falada totalmente surrupiada dos garotinhos loiros de classe média norte-americana que eram protagonistas de filmes hollywoodianos da metade da década de 80 e do começo dos anos 90 - estereótipo resumido na personalidade de outro cara que vivenciou aquele período: Christopher, loiro carioca filho de uma mulher esguia de cabelo curto nascida no Recife e de um cara com barba grisalha e cabelo à escovinha, tipo o Ray Conniff, nascido na Inglaterra. Christopher chamava a mãe de “mom”; o pai de “dad”; a gente de “filho de “pescador”, de “vassalo”, de “sobrinho de faxineira”, de “figurante da novela Escrava Isaura”, de “stupid”, de “asshole”, de “son of a maid bitch”, mas nós gostávamos dele. Christopher tinha uma puta coleção de Playmobil. Christopher tinha uma puta coleção de Comandos em Ação. Christopher tinha um puta apartamento na cobertura do prédio. O puta apartamento do Christopher tinha também uma puta piscina. Christopher tinha um puta Master System. Master System é um videogame que até puta viciada em crack desdenha hoje em dia. Christopher tinha uma prima chamada Jennifer, que não era puta. Jennifer era galesa, parecia uma girafa desengonçada, ninguém entendia porra nenhuma que ela dizia, tinha uma risada de síndrome de down, mas eu a amava. Aos 10 anos, Jeniffer tinha um metro e setenta. Aos 10 anos, eu tinha um metro e cinqüenta. Aos 55, minha mãe tem um metro e quarenta e nove. O meu pai nasceu em 1949, chama-se João, tem 1,77 e vive do balé. Digamos que Jennifer era um jogador búlgaro de vôlei e eu era o anão que cantava com o Kid Rock. Digamos que eu era a Nicete Bruno e ela era o Paulo Goulart. Dizer “Uau”, quando criança, é fofo. Depois dos 20, é gay. Jussara Gosta de Mulher e Tem Peito de Homem também era (é) gay mas nós não sabíamos que menina que gosta de menina também podia ser denominada gay. Por isso a chamava-mos de “esquisita”. “E feia.” “Não chama ela pra brincar com a gente.” “Qual o seu nome, cara?” “Tu também tem pinto?” “Ontem eu vi um filme e me lembrei de você: Minha Vida de Cachorro.” 1990 e as corridas com palitos de picolé da Kibon (sem premiação) que eram realizadas nos pequenos córregos que se formavam quando a nossa rua de terra era castigada pela chuva; de segunda a sábado às 19:00 era hora de Vamp com pipoca de panela na casa do Fabiano; na casa do Fabiano vi sua irmã mais nova cagando, na cozinha, sobre um balde de plástico aquilo que eu ainda insisto em acreditar ser uma almôndega generosa com o sangue fazendo as vezes do molho de tomate; 1990 e a minha prima roubando, depois da escola, balas na loja de conveniência da Texaco; no campinho de terra que ficava em um terreno no final da rua, o jovem Ismael arrancou, aos socos, o aparelho fixo de um gordinho turista folgado chamado Marcos, que achou, sem sombra de dúvida, que iria morrer no momento em que o aparelho, ornado por borrachinhas tricolores paulistanas, incrustou-se sobre suas gengivas saudáveis; jogo de taco com taco profissional da Topper de propriedade dos irmãos RodrigoCláudioMaurício; Rafael Camarão disse que o seu pai espirrava “Atchô!”; 1990 e a propaganda do novo micro-system da Gradiente com a trilha sonora do C&C Music Factory (para quem desconhece, pense no pior dos anos 80 que se sai melhor no século XXI), grupo que cunhou o nefasto termo “Poperô”; 2001 e a mesma prima que roubava balas na loja de conveniência da Texaco foi presa no aeroporto de Zurique, na Suíça, por carregar no corpo, tal como uma “mula”, uma quantidade astronômica de drogas pesadas. Uma famosa atriz brasileira da atualidade disse que “a vida começa aos 45”. Eu digo a ela que a vida começa quando a alegria acaba. Ser jovem nos anos 90 é odiar os anos 80. Depois do Hollywood Rock, Alex parou de gostar de New Kids On The Block e passou a idolatrar o Guns N’ Roses. Nós questionamos, em uníssono, “Já?”. Ser jovem nos tempos atuais é amar os anos 80. Nicolas era o único brasileiro de uma família argentina que torcia para a seleção da Argentina e era obrigado pela mãe a tocar piano e a se vestir como uma criança argentina no período da ditadura. Nicolas, o brechó ambulante. 1990 e todos pendurados no caminhão de lixo. Fabiano caiu do caminhão de lixo sobre uma poça de lama e pediu calça de moletom emprestada para todo mundo no intuído de atenuar a dor que viria à tona no inevitável espancamento perpetrado pela sua mãe. Alice, irmã de Nicolas, loira argentina peitudíssima de pele lívida, uma vez perguntou pra mim, depois de perceber que eu estava olhando avidamente para os seus peitos: “Te impressiona? Quer tocá-los?”. A primeira vez que gozei sem precisar tocar a primeira vez no corpo de uma mulher. Ser jovem descolado nos anos 80 é odiar os anos 80. Deus criou a beleza. Deus criou a natureza, o verde, o vermelho, o arco-íris, o calor, a sombra, o perfume, as águas claras, azuis, os cães saudáveis, os gatos ronronantes, a lama terapêutica, o olhar, os olhos claros, o sorriso, as cutículas, as unhas, a chuva redentora, o fim de tarde, a água que sai da mangueira, as ilhas longínquas, a neve e as estrelas. Deus criou a berinjela, a catapora, a conjuntivite, os vesgos, os cegos, o câncer e os irmãos siameses. Nos anos 70, no Brasil, ser jovem é ser americano ou inglês nos anos 60. Alex parou de gostar de Guns N’ Roses e assumiu peremptoriamente: “O que vira é Red Hot Chili Peppers!”. “Já?” Uma semana depois, Jussara Gosta de Mulher e Tem Peito de Homem quebrou todos as fitas K7 que tinha do Guns N’ Roses. Cadu e o seu pai viviam para matar porcos para viver, pelo menos, até os 60. Minha mãe de um metro e quarenta e nove e o meu pai de um metro e setenta e sete organizaram para mim, de um metro e cinqüenta, uma festa de onze anos com temática dos anos 50 – eu ganhei uma fita do Vanilla Ice. Alex esqueceu Chili Peppers, Danzig, Faith No More, Cypress Hill, Rage Against The Machine, Primus, Sepultura, Slayer e assumiu de vez: “O que vira é dar o cu.” Jussara Gosta de Mulher e Tem Peito de Homem não curtiu e disse: “Ih, malandro, o cara é gay, sai fora!”. Douglas morreu de catapora e me lembro do seu pequeno caixão sendo vedado após duas pazadas de terra e da respiração do seu cachorro dormindo no meu colo. A mãe de Douglas me perguntou “Por que ele?”. Eu pensei, “Por que não?”. Os familiares jogaram flores sobre o caixão, os vizinhos jogaram flores sobre o caixão, a mãe tentou se jogar sobre o caixão, duas semanas depois ela se jogou do terceiro andar do prédio, quebrou os dois tornozelos, não perdeu a vida, mas perdeu o marido. Eu joguei algum dinheiro que devia para ele. Um dia antes de morrer, ele me cobrou: “Até amanhã, caralho!”. “O amanhã acabou hoje”, pensei. Foi mal. Ser jovem nos anos 80 é imaginar que, depois do surgimento do Atari, o ano 2000 terá carros voadores. Deus inventou o amor. Deus inventou o ser humano. Deu nessa merda!