segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

[1999]

Digo à minha namorada: “Encare os espíritos chineses, ignore as bestas espanholas, desdenhe dos psicopatas americanos, é só um filme, cacete, pare de usar as minhas belas mãos para vedar os seus olhos!”.
Mas reconheço que não dormi direito na primeira vez em que assisti A Bruxa de Blair. Eu tinha 17 anos. Mentira, 18 anos. E estava cheio de espinhas purulentas espalhadas por todo o meu rosto. E a menina que eu namorava na época tinha acabado de me dar um fora. E eu chorei na frente dela após o fatídico episódio. O que me fez conquistar o Nobel de melhor exemplo de eufemismo para patético: “Fofo”. E duas semanas depois dessa desventura tentei pegar uma amiga dela chamada Débora, que era meio banguela, em um baile de carnaval promovido por um hotel chique de Guarujá. Evidente que tomei outro fora. Depois tomei todas. Todas as bebidas e todos os foras possíveis e impossíveis de serem tomados em um espaço de quarenta e cinco minutos. Depois surtei. Me joguei na piscina. Perdi a comanda. Tive que ligar para o meu pai vir me buscar para não ter que pagar trezentos reais. Ele veio. Eu paguei trezentos reais. Os meus amigos da escola riram de mim. O meu colega David, quatro dias depois do “inferno”, disse em sala de aula “que o sol veio a ‘encalhar’”. Eu ri na cara dele e disse “a calhar”. Ele gritou que o pai dele nunca havia tido a necessidade de buscá-lo na balada para socorrer o bundão do filho. A sociedade escolar riu de mim. Sobretudo as meninas. Inclusive os funcionários. Até o zelador mudinho. Ana Flávia, do terceiro colegial, foi a única que não riu de mim. Porque me amava. Só que eu não a amava. Então ela gargalhou por vingança. E mostrou os peitos pro Gilson, que era da minha classe. E ele chupou. E não gostou. “Muito pequeno, bem mole.” Ele só sabia falar assim. “Juliana, bom sexo”; “Garganta, dói”; “Água parada, dengue!”; “Leonardo, filhinho de papai”; Eu respondia: “Gilson, mãe vaca”; “Gilson, pai cadeirante”; “Gilson, irmã chupou meu pau”. O que era verdade. Até mesmo o pai cadeirante. Que era a favor do retorno da ditadura militar e acreditava que o fim da violência só seria possível quando resolvessem explodir a favela. Apesar das desgraças, continuei empurrando o meu barquinho sem bateria sobre a maré impiedosa. Continuei perguntando à minha mãe se ela realmente me amava incondicionalmente. Continuei perguntando ao meu pai se eu era verdadeiramente o seu filho mais que campeão. Prossegui perguntando à minha avó, pós Valium e pós “só três dedinhos de uísque”, se existia alguma probabilidade de eu ser adotado. “Claro que não, boneco.” “Vó, eu sou seu neto, não sua puta.” “Hahahaha, você é muito engraçado, meu Choquitinho.” Continuei perguntando a Deus se havia vida após a morte. Ele me respondeu com uma fratura no meu tornozelo esquerdo, um rompimento no meu ligamento, uma cirurgia para colocar sete pinos de platina e uma placa, um gesso para me fazer companhia durante dois meses, um laxante para extirpar a rigidez que se transforma a merda quando se anda pouco, o recorde mundial de punheta, a oportunidade de assistir à última temporada completa de Six Feet Under e reconhecer mais do que nunca que a vida é realmente a morte da vida, mais uma cirurgia para remover o pino que servia somente para bloquear a minha articulação, um mês e meio de fisioterapia, um bolo da Dora, “a Dora dar o cu” para os mais chegados, para ver se ela dava uma mãozinha, as omoplatas, o traseiro, a vagina, sem beijo, a chupadinha miraculosa que levantava até eunuco, mas ela resolveu ser mais uma cidadã a adensar o agourento coro: “Tomara que você cague nas calças no dia do seu casamento, Leonardo!”. “Tomara que você nem case, Leonardo!”. “Tomara que o seu filho seja gay, Leonardo!”. “Tomara que o seu filho seja gay e seja engolido por um leão quando você levá-lo ao zoológico, Leonardo!”. “Tomara que você batize o seu filho de Telmo e se arrependa depois por ter sido o principal responsável de desgraçar a vida do seu filho gay que irá ser engolido por um leão, Leonardo!”. “Tomara que você seja estéril, Leonardo!”.
Portanto continuei deambulando dando ritmo ao pendor intermitente da minha esquálida porém imberbe bunda salpicada por irritantes espinhas arrivistas que provocavam coceiras enquanto o ônus existencial de ter que carregar uma velha catraia esburacadamente úmida sobre os extenuados ombros prosseguia de modo a oferecer um único péssimo caminho escuro envolto por um túnel instalado sobre as águas chernobilescas da travessia Vicente de Carvalho-Santos para continuar a desenvolver a contragosto os imutáveis bom-dia/com licença/boa-tarde/por favor, use desodorante/caralho, tá demorando/boa-noite/boa-noite, tira a roupa, pega o dinheiro, estamos perdendo tempo/ em suma, modos desonestamente honestos de se relacionar com a sociedade - e formas embusteiramente sinceras de se visualizar no espelho e dizer, “sim, realmente, eu tenho uma vida, é, vida, sim!”.
Mas antes disso, mas no início disso, eu estava parado bem em frente ao finado Cine Ipiranga, na Avenida Ana Costa, na cidade de Santos, na companhia do meu amigo Lúcio, que havia, na ocasião, em um ato de insurreição contra a instituição familiar, pintado o seu cabelo de azul, logo ele que havia sempre se gabado por usar os melhores shampoos, os franceses, os espumantes, que embelezavam as suas longas madeixas cor Rio Tietê, que afagavam, às vezes com fúria, sobretudo quando ele empunhava a sua Fender Caralhocaster branca, as ombreiras de suas camisetas invariavelmente negras com as estampas do Megadeth, do Metalica, do Black Sabbath... Lúcio era aquilo que os bem-sucedidos proprietários de lojas de cd no início dos anos 90 chamavam de “cliente fiel”. Lúcio era o tipo de cidadão revoltado que enfiava o dedo indicador na boca escancarada e mostrava a língua no intuito de ostentar um sinal de reprovação para o seu interlocutor ou para si mesmo ao ver uma imagem que lhe desagradava. Exemplo, quando se deparava com algum dos inúmeros pôsteres do Ugly Kid Joe. Exemplo, quando diziam que o Yes era uma banda de exibicionistas. Exemplo, quando viu, incrédulo, o que o Caio fez com a parte detrás do seu cabelo ao raspá-lo a seco com gilete Bic de barbear caminhoneiro. Lúcio era o cara que na adolescência reunia os amigos para tomar uma gin pura enquanto discutia a dúbia vida sexual de Phil Anselmo. Lúcio era o raro espécime que não se importava quando chamavam a mãe dele de vagabunda, mas que se alimentava de um ódio vertiginoso, que só era extravasado por meio da violência ou do sacrifício humano, quando diziam que Mr.Big era rock; ou por meio da sodomia artificial que leva à morte - estupro com cabos de vassoura, com cabos de aço, com picolés congelados por dois meses em forma de cone, com cone de estrada com cobertura de pixe de estrada -, quando injustamente diziam que Lars Ulrich, baterista do Metalica, coçava as amídalas com rôla de negão suada e nada asseada de 42 cm de comprimento e doze cm de diâmetro.
Lúcio era assim, mas ficou assim. Era uma espécie de Mike Tyson do rock, mas decidiu dar uma mudada e se transformar em um Lafon do indie. Deu uma desmunhecada. Desacelerou o pé do metal e de toda a podridão máscula que o envolvia e começou a usar cachecol roxo no verão, a freqüentar as feiras anuais do Mercado Mundo Mix, a encomendar objetos “in” do Mercado Mundo Mix, a marcar encontros para um “coffee” no Mercado Mundo Mix, a achar Pixies melhor que AC/DC, a gravar por cima de Ruas de Fogo e Warriors o “insbibado” Velvet Goldmine, a escutar músicas do New Order e usar adjetivos como “Lindo”, “Sublime”, “Delícia”, “Demais”, “Caramba, que louco”; a esnobar mulheres detentoras de apelidos como “Demo”, “Piolha”, “Bigode”, “Bigode de Pancho Villa”, “Peruana Falsificada”, “Pior que o Sloth”, “Pé de Lama”, “Vítima de Radiação”, “Corpinho de Fóssil”, “Nem Deus Salva”, “Troço de Rato”, “Só 1,99”, “HIV, certeza”, “Grand Canyon” e se relacionar com moçoilas batizadas como “Elisa”, “Abelhinha”, “Sarah Lisboa”, “Abigail”, “Miranda Boaventura” e “Carol”; a remover e destruir os seus antes intocáveis pôsteres do Cannibal Corpse, do Dave Mustaine, do Kirk Hamlet, do Deep Purple, do Gwar, do Motorhead e substituí-los por imagens do Morrisey mordendo o caule de uma margarida, de Peter Murphy, líder do Bauhaus, sentado sobre a tumba de Jim Morrison, no Pere Lachaise, trajando uma tanga preta minúscula de couro enquanto dava uma baforada em um Gitane. A única imagem remanescente do seu passado metaleiro era um pôster de Rob Halford, líder do Judas Priest e eterno Judas dos metaleiros homofóbicos, acelerando a sua Harley Davison e olhando em nossa direção como quem quer dizer, “Porra, gente, tá na cara, né?”.
A cara de cachorro abandonado desgostoso pelo gosto tóxico do rancor inerente reservado aos abandonados com grande coração tomou de assalto o meu saudoso semblante de deslumbramento oferecido pelo inocente amor concebido pela falta de desconfiança que é a mente de um imbecil de 17 anos, mentira, 18 anos, naquela tarde quase nublada de extremo verão em que estava na presença do meu amigo Lúcio, “bom, muito bom, curte Erasure?”, que infelizmente deixaria a cena ao ser procurado por uma menina chamada “Renata”- outros dois amigos, anos depois, deixaram a cena por culpa dos chamados da Renata -, e me deixaria sozinho, estático, perdido, sorumbático, impelido a rastejar pela rampa negra do desafortunado cinema que seria implodido um ano depois, coagido a dilatar as narinas e a receber o odor mágico das pululantes pipocas bicolores, a reservar um cantinho especial no meu bolso para os extintos drops Ducora que ludibriaram até mesmo o mestre Tim, a ouvir o córrego de Coca-Cola de máquina transbordando o obsoleto copo de papelão, a caminhar até minha poltrona na sala de projeção repleta de ácaros, a sentar na poltrona vermelha, a dirigir o olhar para o relógio, a lembrar que nunca tive relógio, a fechar os olhos e ser invadido pela certeza de que não haveria ninguém na sala de projeção para ver o filme comigo, a chegar à tenebrosa conclusão que nem zumbis canibalescos, colegiais orientais possuídas por espíritos ensandecidos, exorcistas norte-americanas peitudas cobertas de chantily que cospem gosma inflamável, sádicos yuppies da década de 80, e bruxas invisíveis que aniquilam visitantes indesejáveis, seriam mais assustadores que a expressão do próprio rosto ao ouvir o seu amor de ocasião lhe dizendo “que não o ama mais”.