A história de um breve romance indie cheio de putaria grudenta - Parte 2
Primeiro sintoma indie: lançar mão de adjetivos delicados. Carmelino Pão e Vinho conheceu Miranda na internet enquanto estava de castigo. Eles conversaram, se encontraram, ficaram e... “foi lindo”. Isso que ele falou pra mim: lindo. E a parada evoluiu e se estendeu para outros assuntos. “Se liga, peraí, é agora, espera só um pouco, ouve só, nossa, esse pianinho é muito... ‘fofo’.” Fofo. Vindo de um homem que ouvia Atari Teenage Riot de cueca preta encardida enquanto comia carne crua fedorenta no quarto escuro para um homem que comia coisas massudas oriundas do interior do nariz: foi aterrador. O fim de um amigo e o início de um... Kid Vinil adolescente. A vítima de Mal de Alzheimer que tem vergonha de lembrar de tudo. Sobretudo das cicatrizes caiçaras que jamais se cicatrizarão. Miranda não existe mas ela toca baixo. Segundo Carmelino Pão e Vinho: “Melhor que todo mundo. Melhor que você, melhor que eu, melhor que o Telmo, melhor que o Rocambole, melhor que o Flea, melhor que o Ron Carter, melhor que o Les Claypool...”. Miranda não existe mas ela conhece de música. Segundo Carmelino Pão e Vinho: “Conhece mais do que qualquer um. Beastie Boys é uma merda. Minor Threat é uma merda. Fugazi é uma merda. NOFX é uma merda. Black Flag é uma merda. Metallica é uma merda. Hole é liiiiindo”.
Amor! “Ame-me ou me ame.”
Carmelino Pão e Vinho nos apresentou coisas boas.
Ele que nos trouxe Sense Field.
Ou foi Miranda?
Ele que nos trouxe Get Up Kids.
Ou foi Miranda?
Ele que nos disse que Get Up Kids não era mais legal.
Ou foi Miranda?
Ele que nos disse que o Further Seems Forever parecia uma escola de samba firulenta. Ou foi Miranda?
Quem disse que Smart Went Crazy era muito melhor que Faraquet?
Relacionamentos amorosos modernos ou não tão modernos assim: Quem é quem? Se você for procurar o significado da palavra relacionamento no dicionário, você não irá encontrar isso: guerra velada, posses sorrateiras, competição infantil, servidão de uma das partes, plantio de ervas daninhas no corpo do outro: plantio do outro no outro. Os relacionamentos modernos ou não tão modernos assim quase sempre ambicionam somente uma coisa: O que é? “Já sei, levar a mina para tomar um sorvetinho na praia.” Não! “Essa é fácil, levar a mina para o motel e tentar levar a mina ao orgasmo ao mesmo tempo em que você chega ao orgasmo, ou seja, dezenove segundos.” Não! “Dar um filho pra ela?” Tá frio. “Dar um urso pra ela?” Não, só se a tua mina for a Maíza. “Dar um tiro na cara dela?” Às vezes acontece isso, nos relacionamentos da Suzana Vieira, por exemplo, ou nos de William Burroughs, mas não vamos nos exacerbar a tal ponto. “Ah, caralho, desisto, qualé dessa parada?” Mudança. “Mudança? Só isso?” Do outro. Pelo outro. Que se transforma em missão cega. Em serviço social mesquinho. Em filantropia às avessas.
O que vou dizer agora pode ser encarado como machismo, pois depõe a favor dos machos, mas a sede de “mudança” parte única e exclusivamente das mulheres. Se o cara for um galinha compulsivo, ela fará de tudo para transformá-lo no personagem do Greg Kinnear no filme Banquete de Amor. Se o cara não dar bola pra ambição, ela fará de tudo para transformá-lo num arrivista inescrupuloso. Se o cara for sincero, ela fará de tudo para transformá-lo numa mentira ambulante. Se a dedicação obsessiva que ela emprega a essa missão não surtir efeito, ela irá dobrar a jornada de trabalho. Se a dedicação obsessiva que ela emprega a essa missão surtir efeito, ela irá lavas as mãos, trocar o número do telefone, fazer as malas e nem se dará ao trabalho de dizer adeus. “Ele faz uma coisa irritante: ele pensa diferente de todo mundo. Ele faz outra coisa irritante: ele não suporta usar terno e gravata. Ele faz mais uma coisa irritante: ele odeia novela. Ele faz outra coisa muito mais irritante: ele não liga para dinheiro e se nega a comprar um carro. Ele faz uma coisa muito muito muito mais irritante: ele continua trabalhando de bartender, ele diz que é a coisa que lhe dá mais prazer na vida. Ele faz outra coisa muito muito mais muito mais muito mais muito mais irritante: ele não é ciumento.”
Eu não conheço nenhum cara que largou a mina porque ela ainda trabalha no Boticário. Eu não conheço nenhum cara que largou a mina porque ela não gosta de futebol.
Eu não conheço nenhum cara que largou a mina porque ela era muito legal.
Eu não conheço nenhum cara que largou a mina porque ela roia muito as unhas.
Eu não conheço nenhum cara que largou a mina porque ela não gostava de filme europeu.
Eu não conheço nenhum cara que largou a mina por conta da tonalidade artificial do cabelo dela.
Eu não conheço nenhum cara que largou a mina porque ela prefere Seu Jorge a Dinosaur Jr.
Eu não conheço nenhum cara que largou a mina porque ela não era ciumenta.
(A minha segunda ex-namorada me largou porque eu não era ciumento.)
Eu conheço caras que largaram as suas namoradas porque queriam largar as suas mãos na bunda do maior número de mulheres possível.
Eu conheço caras que largaram as suas namoradas porque queriam largar as suas mãos na bunda do maior número de mulheres possível.
E eu conheço caras que largaram as suas namoradas porque queriam largar as suas mãos na bunda do maior número de mulheres possível.
A não ser por estes exemplos de múltipla mesmice, o homem sabe valorizar mais as qualidades das mulheres a ponto de ignorar quase por completo os piores defeitos das suas parceiras. “O meu amor por você torna os seus defeitos insignificantes.”
O dia, mulheres, que vocês tiverem a possibilidade de ouvir estas palavras saídas da boca de um homem sendo dirigidas a vocês, tratem de enterrar as suas facas afiadas, de queimar a sua pilha de páginas com fórmulas dispendiosas de futilidade, de retirar os seus sutiãs acolchoados da fogueira, de dar descarga nos seus pôsteres da Sarah Jessica Parker, de doar os seus pôneis, de furar os seus tímpanos enquanto as suas amigas bem-sucedidas tentam os atolar com merda requentada – tratem, enfim, de depositar o seu futuro com os olhos fechados e um belo sorriso estampado no rosto nas mãos desse autêntico cidadão. Eu asseguro que ele fará o inimaginável para deixá-la pavimentar o rumo do próprio destino. Eu asseguro que ele fará o necessário para você não achar que o melhor mesmo é que os outros acham que você deve achar.
Eu retiro tudo que disse caso o autêntico cidadão referido usar peruca.
Os defeitos são inerentes, amar é para poucos.
Às vezes me surpreendo com as minhas cretinices piegas. No entanto, eu considero esse mantra o combustível que rege a minha existência.
Era a missão dela. Ela tinha que sair fora. Carmelino Pão e Vinho viu e sentiu tudo. Os olhos queimaram. A garganta fechou. Carmelino Pão e Vinho viu Miranda fazendo as malas. Viu Miranda sabotar o próprio e-mail. Sentiu que ela arquivava peças íntimas escolhidas de modo aleatório nas frestas mais recônditas de sua memória. Viu e sentiu quando ela encaixotou as suas armas diabólicas – os CDs. Viu e sentiu ao vê-la espalhar as próprias fotos como uma trilha íngreme rumo ao inferno. Talvez tenha sido depois desses contratempos indeléveis que os tímidos choros de Carmelino Pão e Vinho tenham se tornado Tsunamis recorrentes. Ele me via: chorava. Ele via Telmo: chorava. Ele via Rick: chorava. Ele via Rocambole: chorava. Ele se envolveu com uma mina cujo apelido era Demo. “Larga dela, cara.” “Puta, cara... (choro-choro-choro) eu não consigo.” Você a ama?” “Não.” “Então?” “Não dá... (choro-choro-choro) ela é muito fofinha.” Fofinha. Aí ele fez a pior coisa que alguém pode fazer a si mesmo: virou clubber. Indie + Clubber = Terceira Guerra Mundial. Ele passou a usar roupas transadas. Roupas compradas em feiras de cultura GLS. Camisetas com código de barra. Óculos escuros gigantes com armações douradas e lentes amarelas. Sapatênis pomposos número 44. Calças de veludo. Cigarros mentolados e expiração exagerada. Dava medo de andar com ele. Eu andava bem na frente enquanto Telmo segurava a bronca e entrava em acordo com a própria paciência. Quando achávamos que era impossível algo ficar ainda pior, ele começou a jogar RPG pra valer. Indie + Clubber + RPG = AIDS na gengiva. Quando achávamos que era ainda mais improvável algo ficar ainda pior do que o pior com o ainda, ele passou a fazer mágica. Na rua. Para chamar a atenção das garotas. Como um xaveco. Com cartas. Escolha uma carta. Não mostre pra mim. Lembra da carta que escolheu? Não esqueça. Então. Peraí. Só um segundo. É essa? E ele acertava. A carta. Não o xaveco.
O último momento marcante que dividi com Carmelino Pão e Vinho, o resumo supremo da sua personalidade e da de todos os indies radicais do terceiro mundo, aconteceu muitos anos depois de sua última crise de personalidade e da extenuante ressaca pós-Miranda. Ele já era um indie convicto e conformado com a característica instabilidade que se apossa de um entusiasta de Belle and Sebastian nas situações mais ordinárias do dia-a-dia. Eu estava no primeiro ano da faculdade de jornalismo. Ele já estava no quarto ano de publicidade, apesar de ser dois anos mais novo que eu. Quando nem sequer pensávamos que algo surpreendentemente desagradável poderia deixar o mundo um lugar ainda mais inóspito do que essa atuante diarréia de vômito a céu aberto, ele começou a namorar uma indie. Não queira ouvir uma discussão indie. É pretensiosa, afetada, iletrada e não tem o senso de humor lúgubre das discussões de metaleiro. Pior que uma discussão indie, é a demonstração de carinho público entre um casal indie heterossexual. “É melado?” Aposto que deve ser mais melado que esperma de camelo em bochecha ressecada. Havia um bar ao lado da faculdade que eu e Carmelino Pão e Vinho freqüentávamos. Lá não se podia falar palavrão e nem falar alto. Mas podia demonstração de carinho entre casais indies heterossexuais. Como também podia haver uma árvore no meio do banheiro. E também era permitida a presença de gatos pulguentos ao lado do seu copo americano transbordando de cerveja. Eles também davam um sim a hippies que cursavam geografia e que empunhavam um violão desafinado. Como também davam um sim a universitários que cursavam história com as suas diatribes paranóicas contra a Nike, a favor de Yasser Arafat, “Viva Hakim Bey!” e “Quem é Hakim Bey?”. Certo dia eu fugi da aula de Metodologia do Trabalho Científico e fui ao bar para tomar algo bem barato chamado Bavária. Ao entrar, vi que Carmelino Pão e Vinho e sua namorada indie estavam sentados em suas respectivas cadeiras arranhadas situadas em cada ponta da mesa de plástico bamba. Eles estavam com as mãos dadas sobre a mesa. E estavam, meu Deus, olhando um para o outro e... chorando. Pareciam dois guarda-chuvas axadrezados indicados pela revista Simples após serem pegos de surpresa por uma fugaz tempestade de verão. Eu fiquei assustado. Nós, hipocondríacos, temos que ser assustados. É um pré-requisito para entrar no clube. Dores na virilha: câncer. Sede excessiva: diabetes. Dores abaixo da barriga: apendicite ou câncer. Coceira nos olhos: conjuntivite, catarata, glaucoma. Febre: leptospirose, dengue, AIDS, febre amarela, H1N1, Ébola. Ligações de madrugada: morte de um familiar. Alguém gritou gol na rua: gol do Santos. Lágrimas de transeuntes em transportes públicos: traição, aborto, estupro, demissão, rompimento, reprovação, AIDS etc. Então perguntei: “O que aconteceu? Por que estão chorando?” Os dois viraram o pescoço, na minha direção, ao mesmo tempo. Tudo muito bem coreografado. Não havia sorrisos. Só bocas fechadas e relaxadas. Olhos abertos e paisagísticos. Goteiras. Colírios. “Aconteceu alguma coisa com a sua filha?” A namorada indie de Carmelino Pão e Vinho tinha uma filha pequena. “O quê? Aconteceu alguma coisa com a minha filha? Onde está a minha filha?” Eu nunca tinha visto nem uma foto da criança. Quanto menos visitado a Praia Grande, onde a namorada indie de Carmelino Pão e Vinho vivia com a filha. Ah, ela cursava letras. Ah, ela escrevia poemas sobre a força da buceta. Tudo muito lírico, nada de buceta propriamente dita. “Não, tá louca, mina, tá me tirando de pedófilo, caralho?” Brincadeira, eu não falei desse jeito. “Não, eu só to perguntando isso porque os dois tão aí chorando, sabe, aí eu pensei, bem, sabe como é, carros velozes, crianças correndo no meio da rua e.... Então os dois começaram a sorrir pra mim. Um sorriso retardado. Sorriso de iogue. Sorriso Tai Chi Chuan. Sorriso pedófilo pré-ato. Aquele tipo de sorriso que as pessoas dão quando acham que acabaram de ver Jesus. Aquele tipo de sorriso que as pessoas dão quando acham que elas são tão especiais a ponto de Jesus se materializar para dar-lhes um alô. Aquele tipo de sorriso que você dá quando ouve alguém dizer que anteontem viu Jesus na hora do almoço jogando uma pituca de cigarro no chão. Aquele tipo de sorriso que certas pessoas dão por se acharem mais sábias que você. Aquele tipo de sorriso condescendente e imbecil que certas pessoas dão ao acharem que você é imbecil. Ou aquele tipo de sorriso que dei quando aquela pasta cremosa com prazo de validade vencido saiu do meu pau pela primeira vez após chacoalhá-lo ininterruptamente por um minuto embaixo do chuveiro na época em que tomar banho não era nada divertido: a surpresa ao concluir que nem sempre é necessário revolver na lama para encontrar um tesouro. “Léo”, agora ele me chamava de Léeeeeo, “são lágrimas de alegria, cara, sabe por quê?, NÓS VAMOS AO SHOW DO PIXIES!, cara, você sabe o que é isso?, É O PIXIES!, cara, eu e ela vamos ver o PIXIES!, ao vivo, na nossa frente, eles tocando ali, bem ali, pra gente, eu consegui comprar o ingresso, foi meeeeeeeeega disputado, Léeeeeeo, meu deus, cara, que lindo (Lindo!), lindo (Lindo!), lindo (Lindo!), é o PIXIES, meu, você sabe o que é isso?” Sei. Afinal, eu que mostrei o PIXIES pra ele. Afinal, ele que sumiu com uma coletânea dupla que eu tinha do PIXIES. Sumiu também com o meu cd raríssimo do Whirpool. Ele me mostrou o Whirpool. Ou foi Miranda? “Telmo, tenho uma confissão a fazer”, “O que foi, vai assumir?”, “Ainda não, só no dia do casamento do Nestor, daqui a trinta anos, com um negão chamado Antônio”, “Eu já pensei nisso”, “Em casar com um negão chamado Antônio?”, “Não, que o Nestor irá casar com um negão chamado Antônio”, “Tá na cara. Se liga, tenho uma confissão a fazer”, “Faça”, “Eu gosto de Whirpool”, “Nãaaaaaao, Leonardinho, dando munição pro inimigo...”, “Eu até comprei o cd”, “Aquela porra empoeirada que tava jogada na loja do Fera?”, “Exato”, “O Carmelino vai ficar insuportável.” Ele me disse que perdeu o cd do Whirpool e me deu um cd do Diagonal. “Sério? Tu acha que o Diagonal vai compensar o Whirpool?” Eu perdi o cd dele do Sense Field, o Building. Estamos quites. Ele se mudou para São Paulo. Ele tocou por um tempo no Diagonal. Ele se casou e não contou para ninguém. No final do ano passado, numa madrugada de sábado, ele ligou para o meu celular. Ele me convidou para tocar bateria na nova banda dele. Eu disse que não morava mais em São Paulo. Eu não disse que tinha me cansado daquela merda. Eu me cansei de viver naquela merda. Eu meio que disse que não queria tocar mais. Com ninguém. Cansei de ter que depender dos outros para poder realizar as minhas vontades. Banda é isso. Foi a última vez que conversamos.
Carmelino Pão e Vinho não tem nenhuma relevância na história do Nestor. Não esqueçam que esta história, na verdade, embora não pareça, é sobre o Nestor. Carmelino Pão e Vinho foi um mero figurante na História de um breve romance indie cheio de putaria grudenta. O romance que é a força motriz na História de um breve romance cheio de putaria grudenta é o breve romance indie entre Rick e Cristina. Rick não existe. Cristina não existe. Miranda não existe. Cristina é a avó de Miranda.
(Continua na próxima segunda-feira.)
3 comentários:
Ha ha!Adoro Pixies - Here Comes Your Man!!!Tudo de bom ;) ... e outras também né!
Adendo: momentos antes do encontro regado a lágrimas, Rocambole COMPROU os dois ingressos de Carmelino. "Te pago amanhã, beleza?". "Ta cara, mas Pixies é uma merda"
Rodrigo França Pixies é legal cara é descontraído! ;)
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