segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pesadelo em Limeira - O dia em que a esperança morreu logo na chegada - Parte 6


A história de um breve romance indie cheio de putaria grudenta - parte 4

O Sábado de 2004 – 17:52

Eu: Alô?

Rocambole: Por favor, o Leonardo está?

Eu: Peraí, vou chamar ele, o... sou eu, caralho, quem é?

Rocambole: É o Rocambole, porra!

Eu: Fala, obeso, qualé?

Rocambole: Tá com a voz diferentona.

Eu: É, eu tava... chupando um pau.

Rocambole: Pode crê, ô, se liga, onde tu tá?

Eu: Pescando.

Rocambole: Sério?

Eu: Claro que não, porra, to em casa, tu ligou pra minha casa.

Rocambole: Eita, eu pensei que tinha ligado pro teu celular.

Eu: Eu não tenho celular.

Rocambole: Não?

Eu: Não. Se liga, Rocambole, tem certeza que é comigo memo que tu qué falá?

Rocambole: É sim, porra, mó doidera... Se liga, o que tu vai fazer hoje?

Eu: Redundância.

Rocambole: To ligado... O que é isso?

Eu: Redundância.

Rocambole: Sei... mas o que é isso?

Eu: Redundância.

Rocambole: O que é isso?

Eu: Isso

Rocambole: O quê, porra?

Eu: Repetição. A mesma coisa de sempre. Ou seja, merda nenhuma. Não vou tocar em nenhum peitinho. Não vou comer nenhuma bucetinha. Não vou sequer conseguir um selinho safado. Mas vou fazer tudo isso na punheta, sem selinho, eu quero um puta beijão, deixa eu ver... daqui a nove minutos.

Rocambole: Ô, então, vamo pra balada?

Eu: Eu não vo nem fudendo à Lucky Scope.

Rocambole: Não é na Lucky Scope, caralho, é em Santos.

Eu: Qual vai se?

Rocambole: Tá ligado o meu trampo?

Eu: Deixa eu pensá... Não!

Rocambole: Vai rolá uma festa do meu trampo na Breezy e vai rolá vipeira pra nós.

Eu: Na faixa?

Rocambole: 20 mango de consuma + camarote.

Eu: To dentro.

Rocambole: Beleza.

Eu: Liga pro resto da molecada.

Rocambole: Vo ligá agora, pode deixá.

Eu: Que horas tu vai passá aqui?

Rocambole: Umas 21:30.

Eu: Beleza, 22:30. Falow.

Rocambole: Falow.


18:01

Nestor: Alô?

Rocambole: Por favor, o Nestor está?

Nestor: Sou eu.

Rocambole: Fala, danadinho, se liga, vamo pra balada?

Nestor: Quem é que tá falando?

Rocambole: É o Rocambole, caralho.

Nestor: Eba.

Rocambole: Hahahaha... ô, vamo pra balada?

Nestor: Não.

Rocambole: Não é na Lucky Scope não, caralho.

Nestor: Não.

Rocambole: Na Breezy, só vinte de consuma e camarote.

Nestor: Não.


18:07

Telmo: Alô?

Rocambole: O Telmo está?

Telmo: Quem é?

Rocambole: É o Rocambole.

Telmo: Fala, gordinha, e aí?

Rocambole: Tudo beleza. Ô, então...

Telmo: Se liga, Rocambole, tu já jogou Silent Hill 3?

Rocambole: Puta, cara, ainda não, por que, tu já jogou?

Telmo: Eu comprei.

Rocambole: Caralho! Sério?

Telmo: É muito foda!

Rocambole: Eu li a resenha na Game Power, a parada parece assustadora.

Telmo: É sinistro, Rocambole.

Rocambole: Pode crê.

Telmo: É...

Rocambole: É...

Telmo: Ô, tu viu o trailer do filme do Dragon Ball?

Rocambole: Puta, eu vi, mó bosta!

Telmo: Mó lixo, nem vou vê.

Rocambole: Nem eu.

Telmo: É...

Rocambole: É...

Telmo: Pode crê.

Rocambole: É... ô, tu viu que a Bandeirantes vai passá todos os episódio do Cavaleiros do Zodíaco?

Telmo: Nãaaaao?

Rocambole: De segunda a sexta às 13:00 hs.

Telmo: Caralho, vo dá o cano no trampo.

Rocambole: É foda que é na hora do almoço.

Telmo: Caralho, come enquanto assisti à televisão.

Rocambole: É foda, ou eu como ou assisto à parada. Eu não consigo me concentrar nas duas coisas.

Telmo: Entendi.

Rocambole: É...

Telmo: É...

Rocambole: Caralho, eu te contei que eu comprei uns bonequinho do Matrix?

Telmo: É memo? Iraaado!

Rocambole: Ô, o bagulho é igualzinho.

Telmo: To pensando em comprá uns G.I.Joe.

Rocambole: Porra, dá hora. Se liga, tu não tinha uma pá?

Telmo: Então, quando eu cresci, minha mãe doou pra creche.

Rocambole: Nooossa, mó mancada...

Telmo: É, então, mas eu nem brincava mais com us bagulho, se eu soubesse que ia gostá dessas parada depois de velho, eu teria guardado.

Rocambole: É real.

Telmo: É...

Rocambole: É...

Telmo: Se liga, Rocambole, eu to fazendo um trampo aqui no computador e vo te que desligá...

Rocambole: Ah, beleza, muleke.

Telmo: Depois a gente se tromba por aí.

Rocambole: Beleza. Falow, muleke.

Telmo: Falow.


18:15

Telmo: Alô?

Rocambole: Telmo?

Telmo: Sou eu.

Rocambole: Sou eu de novo, caralho, o Rocambole.

Telmo: Fala, bicho.

Rocambole: Porra, eu liguei pra tu e acabei não falando o que queria.

Telmo: Tu é foda.

Rocambole: Ô, vamo pra balada?

Telmo: Puta, muleke, eu nem to a fim de i pra Lucky Scope.

Rocambole: Nem é a Lucky Scope, porra, vamo pra Breezy, vinte de consuma e camarote.

Telmo: Então... se pá, eu vou. Eu tenho que esperá o meu pai chegá em casa pra jantá. Depois eu vo levá a minha irmã lá numa festa na Enseada. Aí eu tenho que fazê uma parada no computador pra marcá um esquema pro meu avô. Depois eu vo comprá um queijo pro meu pai, aí eu vo... tá ligado a Jose?

Rocambole: Aquela mulhé que parece o Gene Simmons?

Telmo: Ela memo, então, eu vo te que deixá uns três saco de cimento lá na casa dela pra depois pegá a cachorra e...

Rocambole: Tu não vai, né?

Telmo: Então, acho que vai se meio difícil. Se pá...

Rocambole: Falow, Muleke.

Telmo: Falow.


18:21

Rick: Alô, poooorra!?

Rocambole: Por favor, o Rick está?

Rick: Quem é que tá falando, méeerrrda?

Rocambole: Então, desculpa incomodá aí, mas é o Rocambole.

Rick: Faaaaaaaaala, gordinho.

Rocambole: É tu, Rick?

Rick: Lógico, poooorrrra, qualé daassss parada?

Rocambole: Eita, tu é estressadão no telefone.

Rick: Tá loco, lesssske, é a minha vibe usual.

Rocambole: Pode crê... o que é isso?

Rick: O quê?

Rocambole: Essa parada de usual.

Rick: Normal.

Rocambole: O que que é normal?

Rick: Usual significa normal, comum.

Rocambole: Saquei.

Rick: Tipo: “Rick foi à balada e pontuou”.

Rocambole: E?

Rick: É usual eu i pra balada e pontuá.

Rocambole: Vai se fudê, pega ninguém.

Rick: Tá me tirando, Rocambole? Eu pego geral.

Rocambole: Eu nunca vi.

Rick: Não viu porque não quis. Eu sempre faço as minha correria.

Rocambole: Sei. Ô, se liga, vamo pra balada?

Rick: Vamo?

Rocambole: Vamo.

Rick: Vamo?

Rocambole: Vamo.

Rick: Vamo?

Rocambole: Eu to falando que vamo, caralho!

Rick: Demorô. Onde vai se?

Rocambole: Na Breezy, em Santos, vinte de consuma e camarote.

Rick: Fechou. Viiiiixi, u menino vai se obrigado a reiná na sua segunda casa.

Rocambole: Só quero vê.

Rick: Tu qué apostá quanto que eu vo pontuá?

Rocambole: Num quero apostá nada. Mas se tu pegá, tu vai te que me avisá pra eu vê com os meus próprios olhos.

Rick: Eu não vou avisá nada. Quem vai?

Rocambole: Eu, tu e o Leonardo.

Rick: Pede pro Leonardo te avisá. Aquela porra não vai pegá ninguém memo.

Rocambole: Combinado.

Rick: Então, que horas tu vai passá aqui?

Rocambole: Eu marquei na casa do Leonardo às 21:30.

Rick: Beleza, 22:45.

Rocambole: Então até mais.

Rick: Até.

E Rick de fato estava certo. Ele pontuou. E todo mundo que estava lá, infelizmente, viu. Eu mais do que todo mundo. No entanto, a questão que fica é a seguinte: Gol contra vale?

22:15

Foi assim que começou a noite. Rocambole chegou às 22:15. Ele arranjou um modo muito positivo de chegar só 45 minutos atrasado. Um recorde para um cidadão que já atrasado diz que já tá na esquina: na esquina de uma rua movimentada da Letônia. Foi assim que Rick fez questão de não aparecer na minha casa para nos obrigar a chamá-lo na casa dele. Foi assim que vimos Rick atravessar a porta de... regata. Era final de junho e tava um puta frio. Tava chuviscando. E o sujeito materializa-se de regata. Às vezes, bem às vezes, quase nunca, eu gostaria de ser o Rick. Por um minuto, no máximo. Com possibilidade de arrependimento repentino e retorno imediato. Rick é aquele tipo de cara que anda com um bolo de cartão de visitas no bolso: Rick, engenheiro, número do telefone e e-mail. E os entrega como se neles estivesse impresso: Caça-Talentos. Ou fotógrafo de moda. Ou produtor de T.V. Ou cineasta. Ou cafetão. Rick se dispõe a colar nas minas mais gatas da balada. E nas mais altas. E as faz rir. Não sei se elas riem pela qualidade humorística da anedota que ele lhes confidenciou ou pela petulância de se dirigir a elas. Rick possui uma qualidade que a maioria das pessoas não tem a coragem de assumir: ele exclui o fator ele. “Não sou eu que estou a caminho de colar na mina mais gostosa da festa.” “Não sou eu que estou me olhando no espelho.” “Não sou eu que estou usando esta ridícula regata preta e esta ridícula regata preta não me faz parecer uma versão em miniatura do Al Pacino no filme Parceiros da Noite.” “Não sou eu que estou prestes a pegar esta distinta senhora que está usando uma encharpe e um gorrinho de lã tricotados por ela mesma.” Eu gostaria de abraçar essa possibilidade toda vez que tenho que me manifestar em público. Seja falando ou não falando por vergonha de continuar falando. “Hoje eu sou o Martin Luther King.” Entretanto, uma das coisas que mais prezo na minha personalidade, e que me deixa possesso quando ela permite que alguma crítica feita por outra pessoa à minha pessoa me seja desconhecida, é o autoconhecimento. E, por conseguinte, a autocrítica. A autocrítica só é acionada quando o autoconhecimento não é pleno. Ele nunca será pleno. A plenitude faria de mim um iluminado. E a humanidade está coalhada de vícios por meio dos quais não descarto me emaranhar algum dia. Em suma, aderir ao autodesconhecimento deliberado ao qual recorre Rick nos embates cotidianos seria uma contradição à crença com a qual me sinto muitas vezes insuportavelmente comprometido. “Hoje serei Brad Pitt. Amanhã, Mick Jagger. No fim de semana, Jude Law. Na próxima terça-feira, um francês. No feriado do dia das crianças, um sueco de cabelo preto dono de uma pousada de luxo em Trancoso.”

Eu nunca quis ser o Rocambole porque eu ia demorar muito para chegar a qualquer encontro. E também não ia conseguir correr atrás do busão. Na verdade, eu não ia conseguir sequer correr. Até o telefone. Eu ia ter que gastar muito dinheiro com brinquedinhos. Bonequinhos dos heróis da Marvel Comics, jogos do Playstation 3, jogos do Wii, jogos do XBox, celulares de última geração, tablets de várias cores etc. Eu ia gastar muito dinheiro com alimentação. Desde saladas combinadas de modo excêntrico a sorvetes da marca Branca de Neve. Desde sashimi de salmão cortado sobre um balcão de mármore por um japonês com luvas cirúrgicas a pão francês preparado pela excrescência manual do padeiro e criador de cavalos Puruca. Eu ia gastar muito dinheiro com máquinas de barbear e cremes de barbear. Eu ia desperdiçar muitos minutos aparando os pelos faciais que assam desafortunadas faces femininas e aquele ninho de pombo chamuscado que cresce no meio das nádegas. Eu não teria o prazer de sentir os meus cabelos tremulando ao vento. Mas poderia apoiar o copo de cerveja na barriga. E conseguiria fazer sites. E poderia me ver fotografado de gênio carregando uma criança nos ombros. Mas teria a coragem de pegar uma pin up gordinha que não vou dizer o nome. Aliás, é um crime uma pin up ser gordinha. Eu teria um fígado de boi tatuado na batata da perna. E teria um banco azul reservado para mim no metrô. E iria acusar o Leonardo de hipster. E me matricularia no kickboxe. E faria todo mundo rir com esta informação.

Até hoje não tenho provas contundentes quanto à vexatória possibilidade de alguém querer me ser. (Bela frase!) A não ser, talvez, Renatinho, o japonês amorenado que satisfazia as suas vontades utilizando as minhas. As minhas camisetas. Os mesmos moletons. Os mesmos bonés. As mesmas opiniões sobre tudo. Inclusive, as mesmas minas. Até o dia que ele realmente se apaixonou por uma mina e destruiu a sua amizade baseada em mim: “Sabe o Leonardo? Então, ele falou que não gosta de você.” “Leonardo, se você tiver alguma coisa pra falar na minha cara, fale na minha cara!” “Deixa eu anotar: se eu tiver alguma coisa para falar na sua cara, falo na sua cara.” Dois anos depois, eu só não falei coisas na cara dela, muitas coisas, como também gozei na cara dela, muitas vezes. No entanto, adianto antes que seja tarde demais (pretensão?) que grande parte da minha existência é composta por situações das quais não me orgulho nem um pouco. Messssmo! Mas com as quais aprendi muitas lições que me serão úteis para o resto dos meus dias. Por exemplo: Nunca subestime a vontade de uma mijada, ela pode se voltar contra você. Nunca fique deitado por duas semanas na cama quando a ordem médica era só de, no máximo, uma semana. Não esqueça que as fezes que estão no seu corpo podem endurecer se você deixar de se movimentar por um longo período. Sempre desconfie quando uma mina mandar uma foto dela pra você a 1km de distância da lente da câmera. Jamais dirija bêbado enquanto fuma skunk com os seus amigos. Sobretudo quando um ônibus cheio de policiais militares está na sua cola. Não bote fé em prostitutas que pedem uma contribuição maior do que a usual com a desculpa que “é para realizar um strip artístico”. Não confie em puteiros que permitem que os clientes adentrem com máquinas fotográficas. Não deixe o Saulo escolher uma prostituta para um strip privativo. A última vez que ele escolheu, ela foi apelidada de Dengue. Jamais brigue com o Mad. Ele não dará um soco na sua cara, mas poderá enfiar o dedo do meio no seu cu! Não se apaixone por filhas únicas. Depois de beber cinco doses de tequila, não beba uma lata de cerveja. Não cague no colégio na hora do recreio. Caso cague, verifique as unhas após sair do banheiro. Não matricule o seu filho em um colégio que guarda os rolos de papel higiênico na cozinha da cantina. Não chegue completamente bêbado em casa, peça uma pizza e se dê ao luxo de tirar uma cochilada. A pizzaria não fica em Marte para você acordar a tempo. Nunca subestime um anão. Ele pode ter um pau maior do que o seu. Não vá ao show do Nenhum de Nós com o seu pai. Em hipótese alguma vá ao show do Nenhum de Nós com quem quer que seja. Se você estiver sentado em um busão lotado e observar uma mulher barriguda em pé, não ceda o seu lugar a ela: ela pode não estar grávida. Se você for a uma festa à fantasia com a sua namorada e ela for fantasiada de coelhinha, você é um corno em potencial. Você está na parte descoberta de uma balada, faz calor, o céu está estrelado, no entanto, apesar de tudo, você começa a sentir algumas gotas de alguma coisa respingando na sua cabeça. Conforme-se: alguém está vomitando na sua cabeça. Não dê carona para alguém que você não conheça. Aliás, não dê carona a mendigos. Aliás, não dê carona a mendigos que têm bicicletas. Não proteste contra o aumento das mensalidades da faculdade com os membros do diretório acadêmico filiados à UNE. Justamente pela inadimplência deles é que a faculdade vai aumentar.

Contudo, no intuito de ser mais persuasivo, e para lhe proporcionar alegria ao deixá-lo sorver a iguaria saborosa do sofrimento alheio, irei relatar em minúcias duas dessas malfadadas porém transformadoras experiências. A primeira delas não é nada perto da segunda. Entenda, a primeira delas também é horrível. É que a segunda é tão escrota que faz da primeira quase um peido que a Sofia Vergara daria. Sinceramente, não sei se terei coragem de relatar a segunda. Ainda há tempo para pensar. A última pessoa para quem contei foi para o ex-namorado de uma amiga da minha mina. Ele é produtor de T.V de um programa famoso, portanto, antes de contar, pensei: “ele já dever ter visto e ouvido de tudo no mundo babilônico das celebridades. Não vai pegar nada”. Ledo engano. Logo após que eu terminei de dividir essa minha triste experiência com ele, ele me disse o seguinte: “Nunca mais irei olhá-lo da mesma forma”. E é assim mesmo que me sinto depois de sair vivo desse nauseabundo episódio: uma outra pessoa. Alguém que por alguns tortuosos minutos habitou no caos. Fez um parto de si mesmo. Tocou na sua pior parte. E saiu com vida.

Entretanto, antes de começar, devo deixar claro que não tenho colhões de me assumir como protagonista dessas peripécias. Ver o “eu” no meio desse vórtice pós-feira não me deixará orgulhoso. Ou seja, terei que usufruir do autodesconhecimento concebido pelo Rick para espalhar toda a minha podridão diante dos seus olhos.

Eu não sou o cara que depois de sair muito bêbado de um bar próximo à faculdade resolveu passar no drive-thru do Mc Donald’s porque estava com muita fome. Eu não pedi um número 2 especial (pão, carne e queijo, sem molho), com batata-frita grande e coca-cola média, e fui comer dentro do carro. Eu não sou o rapaz que comeu tudo, secou o copo do refrigerante e saiu do carro para jogar todo o lixo fora. Eu ainda me pergunto porque esse cara deixou de jogar fora o saco de papelão do Mc Donald’s. Eu não sou o cara que saiu do Mc Donald’s direto à balsa. Não havia fila na balsa, afinal, eram quase quatro horas da manhã, portanto o cara que não sou eu ficou muito feliz ao ver a balsa o esperando. A balsa não estava cheia. Todo mundo sabe, inclusive eu, que, quando a balsa não está cheia de madrugada, eles esperam, às vezes durante um longo tempo, que ela fique cheia. Enquanto isso, o cara que não sou eu, que ainda estava um pouco bêbado porém saciado da fome, começou a ficar com vontade de mijar. Dez minutos se passaram, a balsa ainda parada, e a vontade de mijar aumentando. Quinze minutos se passaram, a balsa parada, e a vontade de mijar cada vez mais urgente. Vinte minutos se passaram, a balsa parada, e a vontade de mijar ficou insuportável. O motor foi ligado. Uma luz de esperança iluminou o rosto do cara que não sou eu. A balsa começou a se locomover. O cara que não sou eu achou que poderia segurar a mijada até chegar em casa. Um segundo depois, ele percebeu que não conseguiria chegar em casa para dar a mijada. A bexiga começou a doer. A bexiga meio que começou a criar vida própria. Ele pensou em sair do carro e dar uma mijada no mar. Ele percebeu que não estava tão bêbado para fazer isso. Ele pensou naquele dia em que ele pediu ao motorista do Expresso Brasileiro, que estava vazio de gente e lotado de cheiro de coxinha de frango estragada, para parar no acostamento da serra porque ele estava ensandecido para dar uma mijada. Ele não estava bêbado naquele dia. Portanto, ele saiu do carro. No entanto, ele voltou ao carro porque tinha uma pá de mina gata fora dos respectivos carros ouvindo psy e eu não sei por que ele achou que mijar ao lado dessas minas seria mais desagradável em comparação ao que ele estava prestes a fazer logo a seguir. A balsa parecia que não andava. Ela não andava. Claro, um navio chinês tinha que passar logo nesse momento. “O que eu faço?”, ele se perguntou. “Deus, o que eu faço?”, típico dele lembrar-se da existência do Divino nesses momentos. “O que eu faço, seu filho da puta?!”, típico dele ofender o Senhor após não ouvir nenhuma resposta, caso ouvisse, tenho certeza que ele se cagaria todo. Ele comprimiu o corpo no assento do motorista. Ele roçou o dedo indicador na bexiga e quase chorou de desgosto com a lancinante sensibilidade. Ele mataria alguém por um alívio imediato. A balsa continuava parada. O navio chinês continuava interminavelmente se arrastando. As minas dançavam psy e soltavam perdigotos com vodca. Ele começou a suar frio. Estava um puta calor. Ele resolveu fechar os vidros do carro. Ele ficou ereto no banco do motorista e olhou para os seus olhos no espelho retrovisor e viu pelos seus olhos que ele estavam dispostos a cometer uma loucura inconfessável. Mijar nas próprias calças seria desmoralizador. Ele não estava preso no deserto. Ele estava no meio da sociedade. Ele estava vivendo o sonho. Ele tinha um carro do pai dele, tinha dinheiro do pai dele, tinha um Nike comprado com o dinheiro do pai dele. Ele amava o pai. O pai era Deus. E ele não era barbudo. E às vezes peidava na sala enquanto estava assistindo algum filme de guerra antigo no TCM. E não usava papel higiênico porque ele viu um documentário na Discovery que dizia que os hindus... Ele precisava de alguma coisa. O tempo parou. Ele necessitava de algum objeto para poder mijar dentro dele. “Puta que pariu!” A balsa voltou a andar. Para trás. O navio chinês estava andando meio torto. Foi a primeira das duas vezes em sua curta e praticamente casta existência que ele considerou o breu sem fim da morte como um alívio. Foi a primeira das duas vezes em sua curta e quase casta existência que ele considerou o breu sem fim da morte mais aprazível do que o breu sem fim da desonra social no qual ele estava à beira de se jogar em desespero. Ele encontrou o saco de papelão do Mc Donald’s no banco de trás do carro. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “O que a porra desse saco tá fazendo aqui?”. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “Por que eu não joguei o saco fora ao invés do copo?”. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “O natural não é terminar o lanche primeiro e finalizar o refrigerante depois?”. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “O natural não é jogar tudo dentro do saco de papelão e jogar o saco de papelão com tudo dentro dentro do lixo?”. Não tinha jeito. Teria que ser dentro do saco. O saco que não estava dentro do lixo. O saco que não estava dentro das calças. Mas dentro do carro (que logo mais ficará com cheiro de lixo). A balsa recomeçou a se locomover. Agora para a frente. Mas ainda faltavam quatro minutos para o término da travessia. Era tarde demais. Ele disse baixinho, para si mesmo, e para o saco, o seu saco, e para o outro saco, o saco do Mc Donalds, e para o seu pinto: “É nóis”. Ele abriu o saco. Certificou-se que dessa vez não era para vomitar. Ele botou o saco aberto no colo. Abriu a braguilha da calça jeans. Na verdade, ele arriou toda a calça até os tornozelos. Quando estava completamente bêbado, ele às vezes arriava toda a calça ao mijar no mictório da balada. Ele sofreria muito na cadeia se adotasse esse ébrio costume. Ele olhou para a frente. Olhou para trás. Olhou para ambos os lados. Olhou para o céu. E pediu. Pediu. Pediu... mais sorte da próxima vez. Pediu. Pediu... que não houvesse uma próxima vez. Ele tirou o saco de papelão do colo. Ele ficou duelando consigo para achar uma posição ou lugar onde ele pudesse posicionar o saco e alvejá-lo com sucesso. “Se eu segurar o saco com uma mão, e segurar o meu pinto com a outra, o saco pode rasgar com a quantidade excessiva de urina.” “Se eu colocar o saco no colo, e tentar mijar para o alto, para o mijo cair no saco, não no meu saco, mas no de papelão, como um chafariz, há a possibilidade de o mijo afagar o meu rosto.” “Se eu colocar o saco no chão, entre os meus pés, o prepúcio pode bloquear parcialmente a uretra e o que era para ser um fio único de urina pode virar um fio duplo de urina que provavelmente sujará muitas partes do meu carro e do meu corpo...” Mas não havia tempo para pensar nisso. E ele não estava pensando nisso. Já era. Ele já havia tirado a sua samba canção remendada do Chico Bento pescando uma cueca remendada dentro de um rio remendado. Ele já tava mijando. Dentro do saco. Ele já tinha soltado o batido “Ahhhhhhhh...” logo após começar a mijar. Ele colocou o saco em pé sobre a palma da mão esquerda e segurou aquela porra que parecia uma azeitona cor de pele sonolenta com a mão direita enquanto um jorro de mijo esverdeado desaguava justamente onde ele havia planejado. O saco começou a ficar quente. Os dois sacos. Ele sentiu a temperatura do próprio xixi na palma da própria mão cuja palma já enrolara muitos brigadeiros em tardes invernais. Ele começou a sentir o próprio mijo na própria mão cuja palma segurava o saco que havia acabado de estourar. “Caralho...” Ele levantou o saco para ver o que estava acontecendo enquanto o pinto mijava pra baixo e a urina empoçava o banco do motorista. Ao levantar o saco, os resquícios de urina que ainda resistiam bravamente dentro do saco de papelão caíram no seu colo, respingaram sobre o seu peito, escorreram pelas canelas, encharcaram as suas meias, enquanto o pinto, agora descontrolado e nunca antes tão vivo e indomável, lavava o volante. Era uma puta mancada com o pai dele sujar dessa forma o volante que o pai guiava todos os dias úteis para ir ao trabalho para coletar o dinheiro para o filho comprar um monte de cerveja que inchava a bexiga a ponto de explodi-la sobre o volante que dava ao pai a direção nos dias úteis para ir ao trabalho para coletar dinheiro para o filho comprar cerveja... Então ele jogou o pau para a mão esquerda molhando sem querer o joelho esquerdo e, com a mão direita, abriu o porta-luvas e redirecionou o pau para aquela direção. Puta que pariu, mó mancada, os óculos da mãe dele estavam lá. Puta que pariu, mó mancada, o livro do I Ching quase totalmente grifado da mãe dele também estava lá. Puta que pariu, mó mancada, o documento do seguro também estava lá. Puta que pariu, mó mancada, a coletânea definitiva da Dalva de Oliveira que o pai passou anos montando como um arqueólogo em busca de sensações da infância no bairro da Pompéia também estava lá. Adeus, óculos. Adeus, livro do I Ching. Adeus, documento do seguro. Adeus, coletânea definitiva da Dalva de Oliveira. Afoguem-se! Então ele largou o pau. O pau agiu a essa tão almejada liberdade como uma mangueira de bombeiros tresloucada portanto solta após a explosão de dez andares consecutivos de um prédio de cinqüenta e três andares consumido pelo fogo com todos os moradores dentro. Tá bom, exagerei. O pau agiu a essa tão almejada liberdade como uma micro-arminha de brinquedo tresloucada e cheia de água poluída portanto emperrada após o desmoronamento de cinco andares consecutivos de um prédio de sete andares consumido pela inépcia de uma criança retardada de 11 anos que não entrou em um acordo inteligente com as peças coloridas do Lego fudendo assim com a vida de duas famílias prósperas de piratas de Playmobil. Era como um Boneco de Posto de gasolina em miniatura em meio a uma tempestade tropical que por acaso detém a estranha habilidade de jorrar líquido colorido pelo topo da cabeça. Se alguém disser que já viu uma carnificina de mijo, ou uma orgia de mijo, ou a dança das águas urinadas, ou, em vez da Esquadrilha da Fumaça, a Esquadrilha da Mijada, essa pessoa testemunhou na entoca o que estava acontecendo no interior daquele carro que apodrecia vertiginosamente. Mijo no parabrisa. Mijo no painel. Mijo no rádio (que a título de lembrança tocava Marcos Valle e o seu nefasto hit oitentista Estrelar: “Tem que correr, tem que suar, tem que malhar, vamos lá, musculação, respiração, ar no pulmão...”). “Caralho, no olho nãaaaaaao!” O infeliz cara que não sou eu colocou os dedos mijados entre os cabelos mijados e gritou “Essa porra não vai acabar nunca?!”. A balsa começou a se preparar para atracar. “Não, merda, dentro do nariz não.” O cara que não sou eu começou a chorar em desespero. As lágrimas uniram-se às urinas e criaram um pequeno córrego no lado esquerdo do banco do motorista batizado de Novo Tietê. No rádio começou a tocar Guilherme Arantes e sua perdição ‘Planeta Água’. O condutor da balsa finalmente conseguiu atracar a balsa. As minas gostosas do Psy amontoaram-se dentro dos seus veículos. O processo da descida da rampa para a subida dos carros foi concluído. Subitamente, o vazamento urinal foi cessando. Um pingo no tênis. Um jorro no cinto de segurança. Um traço no dorso da mão. O cara que não sou eu olhou para o retrovisor molhado e viu todo o rosto molhado. Ele não conseguia discernir o que eram lágrimas e o que era urina. Os carros começaram a sair. Ele virou a chave molhada, ligou o carro internamente molhado e abriu os vidros molhados. As minas gostosas do Psy emparelharam os seus veículos 4X4 ao lado do seu carro... humildo: uma fusão de humilde com úmido. Elas disseram: “Ihhhh, meu, o cara tá chorando”. “Não chora não, cara, você tá no Guarujá, você tá no pico.” “Levanta a cabeça, meu, relaxa, bem-vindo ao Guarujá.” “É, meu, bem-vindo ao Guarujá.” Ele disse: “Valeu”.

(Continua na próxima segunda-feira.)



Um comentário:

Ana Paula disse...

Já passei por isso igual ao cara que não é você ... kkkkkkk ... PS: 2X 8° série.