segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Tudo É Albino Menos Rebeca recomenda:

Purgatório Americano

Fazia tempo que eu não lia um livro que me deixasse, de certa forma, apreensivo e feliz. E o melhor de tudo é que se trata de uma obra de um autor que até então me era desconhecido (escrevo este texto no dia 23 de novembro de 2009). John Haskell tem 51 anos e é americano da Califórnia. Vive no Brooklin e também é ator, dramaturgo e artista performático. O seu primeiro livro, Eu Não sou Jackson Pollock, foi lançado no Brasil, via editora Rocco, em 2006. No entanto, ainda não tive a oportunidade de lê-lo. Já Purgatório Americano, lançado aqui em 2009 pela mesma editora, me deixou em êxtase. Êxtase mudo. Nada de gritinhos agudos, palminhas rápidas e estridentes, e pulinhos que quase não saem do chão. Puro respeito e admiração contida.

O casal para o carro no posto de gasolina. O marido sai do carro e vai até a loja de conveniência comprar algumas coisas para comer durante o trajeto. Olha as embalagens, escolhe os produtos com cuidado, pega um pacotinho de amendoim, uma barra de cereal e uma bebida supostamente energética. Vai ao caixa, paga, sai da loja e nem o carro e nem a sua mulher estão mais lá. Nem em volta. Sumiram! Ele espera. Liga para o celular dela. Desligado! Espera. Pode ter havido algum problema com o carro e talvez ela tenha ido solucioná-lo. Espera. De novo liga para o celular dela. Desligado. Liga para a casa, quem sabe ela esqueceu alguma coisa importante em casa e foi buscar. Ninguém atende. Espera. Ela pode ter sido seqüestrada e levada para algum lugar longínquo onde vão colocá-la sobre uma toalha de piquenique e sabe-se lá o que vão fazer com ela. Espera. Ele volta a pé para a casa. É início de primavera em Nova Iorque mas ainda faz frio. Ele percebe que o dia está se esvaindo e se sente cada vez mais temeroso com a sensação de invisibilidade que o apossa aos poucos. Chega em casa, senta na sua poltrona favorita e espera. A mãe dela liga, afinal, eles estavam indo encontrá-la, mas ele não faz questão de atender. Já é noite, ele tenta dormir, mas não consegue. A mãe dela liga novamente e ele não faz questão de atender novamente. Um novo dia surge, ele levanta da vigília, vai até o quarto da mulher e acha um mapa. No mapa, há um círculo feito com uma caneta hidrocor sobre a cidade de Nova Iorque. Do círculo, sai uma linha traçada até Lexington, Kentucky, cidade que também estava marcada com um círculo. E na cidade de Boulder, que fica em Colorado, também. Na Costa Oeste, em San Diego, Califórnia, também. Ele não lembra de ela conhecer alguém em Lexington. Ele não lembra de ela conhecer alguém em Boulder. Entretanto, em San Diego, na Califórnia, foi onde ela nasceu. Ele decide ir atrás dela. Ele decide seguir o mapa traçado por ela. Compra um carro usado e leva consigo objetos que o fazem lembrar dela. Uma caixa com livros de bolso. Um envelope com fotos. Fitas cassete. Roupas. Saco de dormir. Um vaso com um cacto. Binóculos. Um laptop e o bandolim do pai dele. Objetos, só objetos, que o fazem lembrar dela - que o fazem lembrar de Anne.

Purgatório Americano é um livro feito para ser lido de uma só vez. Como um filme que não o deixa nem sequer ir ao banheiro. Mas não foi isso o que eu fiz. Eu gosto de retardar o processo quando o livro é maravilhoso. Eu gosto de repensar o livro enquanto faço outras coisas que devem ser feitas todos os dias. Eu não quero que ele acabe rapidamente. A realidade-fictícia paralela deve ficar em suspenso para compensar o tédio que é trabalhar durante um mês para ganhar num específico dia de cada mês. Às vezes não consigo lembrar do rosto de algumas mulheres que amei. Foi tudo tão intenso, fugaz e impulsivo que os detalhes se perdem, as pintas em lugares únicos, as lascas na dentição, o tremelicar dos lábios, o formato dos dedos dos pés, os perfis recorrentes, o tom de voz ao telefone, as manias surgidas da mente que são transmitidas ao corpo, os múltiplos hálitos correspondentes à determinada hora do dia, o comprimento do cabelo, o pêndulo do caminhar, a postura, o som da risada, o indivíduo único vira um borrão comum – a pressa é inimiga da perfeição das boas lembranças que não queremos esquecer sobretudo nos momentos em que nos vemos no vazio dos outros. Purgatório Americano é um livro para ser lido para sempre - e um ótimo exemplo da inutilidade da crítica literária nacional que, simplesmente, ignorou o lançamento de uma das mais instigantes e belas obras lançadas por um autor no século XXI!

(Semana que vem continuo com a confusão que é aquela porra de Pesadelo em Limeira - O dia em que a esperança morreu logo na chegada. Faltou-me tempo para escrever na semana passada.)

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