segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O ordinário vira história

Ele nem sempre começa quando abre os olhos pela primeira vez.

Pois pode fechá-los no segundo seguinte

e abri-los quarenta segundos depois.

Mas chega uma hora em que eles ficam abertos,

a não ser pelas breves piscadelas,

que podem durar um pouco mais se vierem acompanhadas

por um suspiro de cansaço,

ou por uma dor profunda,

ou pelo costume de ter que suspirar de vez em quando,

mesmo que seja para criar um vínculo com alguém,

ou,

odiosamente,

para se igualar a todas as outras pessoas

e os seus suspiros

e os seus bocejos

e todos os

outros bocejos subseqüentes ao dos predecessores.

Ele acredita que pensar bastante faz bem para quem não pensa.

Várias vezes ele pensa em não escrever nada

para deixar os outros fazerem isso por ele.

“Deixar para os outros que,

com a mais absoluta certeza,

farão por eles o que foi feito para você.

Por que escrever grandes romances se Jeffrey Eugenides

pode fazer isso por mim

e muito melhor do que eu posso fazer para mim mesmo

e para os outros que acham que foi feito para eles?”

Às vezes ele gostaria de ter origem judaica.

De ter um avô polonês que sofreu em Auschwitz.

De carregar uma mancha vermelha inchada no rosto.

Sofrer um acidente

e ficar paraplégico

e depois de anos de longa batalha voltar a andar

e virar o mais puro exemplo de perseverança

e amor à vida.

Converse com o meu filho,

por favor,

ele está querendo se matar

só porque a namorada acabou de se matar

com uma overdose de remédios para cavalo

porque não conseguiu passar no vestibular.

Goze na minha boca

e dê um pouco da sua coragem.

Só que é tudo tão normal.

A

história

de

um

homem

que

nasceu

de

um

acordo

entre

duas

pessoas

de

sexos

diferentes

que

não

tiveram

meios

de

perguntar

se

ele

gostaria

de

nascer

ou

viver

no

escuro

desprovido

da

informação

de

que

um

lugar

onde

luz

e

onde

todos

aparecem

à

espera

do

dia

em

que

irão

sumir.

Como um peido oriundo do anonimato.


(Prometo que, na semana que vem, irei finalizar a história que comecei na semana passada. A minha vida, nessa época do ano, fica uma bagunça. Para se ter uma ideia, só agora percebi que estou usando a cueca do avesso - o dia todo com a cueca do avesso, fio dental de algodão.)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pesadelo em Limeira - O dia em que esperança morreu logo na chegada - Parte 8

A história de um breve romance indie cheio de putaria grudenta - Parte 6

Eu não sou o cara que quebrou o tornozelo no dia 7 de maio de 2006. Eu não sou o cara que partiu o tornozelo ao meio e teve que colocar sete pinos para remediar a destruição. Eu não sou o cara que ficou com o tornozelo pendurado porque também rompeu o ligamento. O médico disse ao cara que não sou eu que é mais comum romper esse tipo de ligamento quando, em um acidente de carro, no desespero, a vítima tenta tirar à força o pé que ficou preso entre as ferragens. O cara que não sou eu foi levado à sala de cirurgia num aventalzinho transparente que não alcançava nem a metade das coxas. Antes da cirurgia, o médico chamou todos os médicos residentes para ver a situação do cara que não sou eu. Os médicos residentes eram jovens super gostosas com a mesma idade do cara que não sou eu. Se o cara que não sou eu já sai em desvantagem quando pode planejar o próprio visual, imagine com um aventalzinho transparente que não chega à metade das coxas e com a touca da Vovó Mafalda na cabeça. O cara que não sou eu ouviu, na cirurgia, enquanto o cirurgião aparafusava os parafusos de platina nas extremidades rompidas do tornozelo com uma furadeira adaptada, a equipe médica discutindo, às risadas, a situação crítica do Palmeiras. O cara que não sou eu (que, aliás, é corintiano), depois de sair da cirurgia, comentou com a enfermeira que não estava sentindo a bunda. A enfermeira disse, com um senso de humor descabido, que isso era perigoso. Já no quarto, o cara que não sou eu percebeu que se ele cortasse o próprio pau com uma faca de açougue ou mordesse o próprio pau com uma dentadura de adamantium ou arrancasse o próprio pau com uma serra elétrica ele não iria sentir dor alguma. Ele ficou tremendamente assustado com a extrema insensibilidade de sua genitália. A mãe do cara que não sou eu disse que, às vezes, após a cirurgia, “o paciente precisa de uma sonda para extrair a urina que fica presa na bexiga por conta dos efeitos colaterais da anestesia. Não é recomendável deixar a bexiga inchar.” O cara que não sou eu recebeu a anestesia raquiana, que inutiliza os movimentos da cintura para baixo do paciente. De madrugada, o cara que não sou eu teve que solicitar o auxílio da enfermeira de plantão para colocar uma sonda no seu pau porque ele estava morrendo de vontade de mijar mas não conseguia. A sonda é um caninho de espessura um pouco superior da de um canudo de milk shake que é colocada no interior da uretra. O cara que não sou eu nunca imaginou que o interior do seu pau pequeno podia ser tão longo e tão dolorido. Ele não sentiu que estava de fato mijando mas ele estava. O cara que não sou eu ficou dois meses engessado. Ele foi informado que teria que evitar, durante os dois meses de convalescência, apoiar o pé fraturado no chão. Portanto, quando ele sentava em algum lugar, ele tinha que apoiar o pé em alguma coisa. Quando ele colocava o pé no chão, ele ficava cor de vinho. Antes de sair do hospital, o cara que não sou eu foi alertado pelo médico que ele tinha que ficar, no máximo, três dias em repouso, sem sair da cama, à exceção da urgência de uma cagada. O cara que não sou eu ficou... quase duas semanas sem levantar-se da cama. Quando voltou ao médico para retirar os pontos, o médico foi alertado pelos pais do cara que não sou eu que há quase duas semanas o cara que não sou eu “não levanta da cama.” O médico disse em tom peremptório que se ele continuasse deitado como um morto filho da puta ele ficaria com escaras. Escaras são feridas que brotam nas extremidades ósseas das pessoas que ficam muito tempo numa mesma posição. E, além das escaras, ele poderia ter sérios problemas intestinais. “Há quanto tempo que você não caga?” “Olha, sinceramente, desde o dia em que quebrei o tornozelo.” “Vixi, tá fudido, tenho quase certeza que a merda já tá empedrada no interior do seu intestino. É bom você começar a se mexer. Literalmente!” O cara que não sou eu teve muitos problemas com as muletas. O principal problema foi que as muletas que ele utilizou durante os dois meses em que ficou engessado eram para pessoas amputadas. Ele só soube disso quando começou a fazer a fisioterapia. As muletas foram emprestadas pelo amigo do pai do cara que não sou eu que teve a perna direita amputada depois de subir na moto bêbado e chocar-se contra um ator que estava vestido de palhaço no ponto de ônibus. O cara que não sou eu perdeu a conta de quantas vezes ele rolou pelas escadas da faculdade. O cara que não sou eu perdeu a conta de quantas vezes ele caiu ao tentar atender um telefonema que não era pra ele. O cara que não sou eu perdeu a conta de quantas vezes ele caiu ao sair do banho. O cara que não sou eu perdeu a conta de quantas vezes ele caiu ao levantar-se da cama para lavar as mãos depois de uma merecida e solitária punheta. O sexo sempre foi um problema para o cara que não sou eu. Na verdade, o problema não era o sexo, era fazer o sexo, ou encontrar alguma mulher disposta a fazer o sexo. Agora o problema era encontrar uma mulher disposta a fazer o sexo com um cara engessado que andava o dia todo de pijama, que odiava a vida, e que vagava tropegamente pelo mundo sórdido das aparências com um par de muletas para amputados. Mas havia uma mulher. Havia uma mulher que o idolatrava. Havia uma mulher que, um dia, disse pra ele que se ele aceitasse namorar com ela, ela chuparia o seu pau a hora que ele quisesse. E ela era bonita. Tinha peitos grandes. Tinha uma risada irritante. Beijava bem. E fazia sons estranhos quando tinha o pescoço beijado. Não dava para saber se ela estava com tesão ou se estava desfilando descalça sobre pedaços pontiagudos de cacos de vidro colorido. Ela dizia pra ele que ele era muito talentoso. Beijando, provavelmente, porque a única coisa que eles faziam quando se encontravam, além de não conversar, era atacar-se mutuamente com as suas línguas. Ela dizia pra ele que ele era muito engraçado. Ela dizia pra ele que ele era tão bonito quanto o Dinho Ouro Preto. E, apesar de sentir-se contrariado com essa comparação, ele achava que devia haver alguma coisa boa no meio disso tudo. E, para tranqüilizá-lo, uma amiga sua da faculdade disse que ele parecia sim o Dinho Ouro Preto. Isso se o Dinho Ouro Preto fosse um mendigo. E essa declaração equilibrou as coisas. Portanto, quando ele teve que pensar durante dias em uma menina na sua lista mínima de prováveis parceiras sexuais disposta a aliviar o excesso de esperma que saia do seu pau como um jorro de urina tal qual um adolescente alcoólatra com um pau de 95 cm, só havia um nome: o dela. Então ele ligou para ela. E falou que estava doente. Colocou fratura na categoria doenças. Estava sozinho. Como se não fosse normal pra ele ficar sozinho. Estava com saudades dela. Como se saudade fosse não ligar para ela durante três anos. Como se saudade fosse falar um blasé “Não!” para uma menina que se ofereceu a chupar o pau dele por todos os segundos que restavam dos seus dias. Ela ficou surpresa com a ligação. Ela sublinhou surpresa, não feliz. O último dia em que eles se encontraram foi dentro da balsa, na volta da faculdade. Ela, educação física. Ele, jornalismo. Os dois estavam de bicicleta. Ela estava sozinha. Ele estava com os seus amigos retardados. Dois dias atrás eles haviam se pegado. Não ele e os seus amigos retardados, ele e ela. Foi legal até o momento em que ele se descuidou e mordeu a língua dela. Então os dois saíram pedalando juntos da balsa. Ela perguntou pra ele se ele não queria acompanhá-la até a casa dela. E ele falou que “Não!”. E foi embora com seus amigos retardados enquanto ela entrava à direita na rua da Jacaré Motors ouvindo os amigos retardados dele provocando um carrinheiro que trafegava no meio da rua e respondia a eles que ele comia um cu: “Eu como um cu, eu como um cu, eu como um cu”. Então ele perguntou a ela como estava a sua vida. Como se ele se soubesse como estava a vida dela há três anos. Ela havia largado o curso de Educação Física na Unimes. Ela estava cursando secretariado nas faculdades Adélia. Retrocesso. Até um tempo atrás ele andava, agora ele temia a tenebrosa possibilidade de ficar manco. Ele ficou feliz ao presumir que ela estaria abalada pelos atuais retrocessos de ambos e por isso sentiria necessidade de se intoxicar numa atmosfera luxuriante de sexo sujo sem compromisso. Ele queria isso. Ela que o atacou na primeira vez em que eles ficaram juntos. E em todas as outras em que eles ficaram juntos. E ela falava dele pra todo mundo. Como era demais ficar com ele. Portanto, o que podia dar errado? Ele não era mais o mesmo. Ele lembrava menos o Dinho Ouro Preto e lembrava mais o vocalista do Dr. Silvana. Ele estava lendo umas paradas estranhas e depressivas. Sinceramente, ele estava lendo. E isso já era uma mudança e tanto pelo que ela conhecia dele. Ele era o único cara que tirava dez nas provas de diversas matérias sem ao menos saber o que estava escrito nelas. Ela passava cola pra ele e ele passava de ano e ainda passava a mão na bunda dela e o mundo era uma passagem agradável sobre a qual desfilava o seu triunfo egoísta e alienante. Ele estava lendo umas paradas escritas por um mano gringo chamado Raymond Carver. Ele estava lendo uma parada cabeça chamada Sem Logo – A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido. Ele tava achando da hora as histórias de um fita tristão chamado John Fante. Ele tava curtindo pra caralho uma coletânea de textos de ficção científica que foram recusados pelas publicações para as quais foram enviados. O nome da coletânea era Futuro Proibido e havia um texto escrito por um truta chamado Colin Wilson pelo qual ainda hoje ele fica chapado quando o lê. Ele viu um documentário sobre um inglês de 37 anos que mora em Nova Iorque que saiu de casa à noite, pegou um metrô e acordou no dia seguinte dentro do vagão do metrô sem saber quem ele era. Ele começou a acompanhar uma série sobre uma família que administra uma funerária e achou a melhor série do mundo. Ela estranhou essa versão culta do cara que não sou eu, mas mesmo assim prometeu que daria uma passada lá para ver como ele estava. Os pais do cara que não sou eu tinham viajado a negócios e só voltariam no dia seguinte. Portanto o cara que não sou estava sexualmente famélico e sozinho. Então ele foi tomar banho. Tomar banho não é uma coisa que ele costuma fazer com freqüência. O cara que não sou eu sempre foi muito supersticioso. Nada a ver com Deus ou macumba ou cristais ou miçangas. E sim com objetos de vestuário e teorias estéticas. Por exemplo, quando ele pegou pela primeira vez a sua ex-ex-namorada, ele não havia tomado banho o dia inteiro. Portanto ele achou que, para dar sorte com as mulheres, ele não tinha que tomar banho. Ele não pegou mais ninguém adotando esse patético método, tomou um fora da ex-ex-namorada e além do mais ficou cheirando como a pia do apartamento do Rocambole. O cara que não sou eu parou de lavar os cabelos quando pegou pela primeira vez a sua ex-namorada em um costumeiro dia gélido de junho em que ele não lavou o cabelo. Ele acordou de manhã, não tomou banho, colocou um gorro na cabeça e foi à escola. Saiu da escola, foi para casa, tirou o gorro da cabeça e achou o cabelo da hora. Depois ele entrou no quarto, fechou a janela e ficou sentado ereto na cama a tarde toda para não desmanchar o seu penteado. Depois anoiteceu, ele tomou banho, mas não molhou a cabeça. Se deu bem. Depois ele se deu mal e acabou constantemente chifrado e com o cabelo liso mais black da história da classe média guarujaense. O cara que não sou eu achava que havia anjos escondidos alvejando os seus olhos com flechas líquidas compostas com sangue de pessoas aidéticas. O cara que não sou eu passava quase o dia todo, menos enquanto estava dormindo, enfiando o dedo no olho para tirar o sangue que estava escondido no interior das suas pálpebras. O cara que não sou eu tinha um mantra na cabeça para afugentar coisas ruins que vagavam pela sua mente: “Por favor, para com isso, por favor, para com isso”. Ele tinha que falar esta frase duas vezes para se sentir livre das piores doenças e das piores atitudes de outras pessoas. O cara que não sou eu não usava mais camisetas que haviam sido usadas em um dia em que deu tudo errado. Ele começava calçando o tênis com o pé direito. Ele virava para baixo todos os calçados que estavam com a sola para cima. A mãe dele disse para ele que sola para cima a mãe do dono do calçado morre. Mas naquele dia de esperança isso não significava mais nada para ele. Portanto ele fez questão de tomar um banho completo. Ele limpou as unhas, coisa que nunca havia feito na vida. Ensaboou o tríceps, outra coisa que ele nunca havia feito na vida. Ele nem sabia que tinha tríceps. Lavou o umbigo, mais uma nova experiência. Ensaboou a cabeça do pau, um dia de descobertas. Passou shampoo nos cabelos. Quanto tempo ele não fazia isso? Passou condicionador. Ele já havia feito isso? Escovou os dentes. “Alguma vez eu fiz isso duas vezes em um só dia?” Engoliu um Listerine. “Eu não sabia que era para gargarejar.” Usou secador nos cabelos. “Eu que vou comer a mina ou ela que vai me comer?” E ficou parecendo um tipo de Rod Stewart jovem com muletas de amputado. Ou parecia Jennifer Beals, protagonista do filme Flashdance, pronta para uma dança adaptada para fraturados que flanam com dificuldade ao apoiarem-se em muletas para amputados. Escolheu uma cueca pequena. O seu pau fica mais ameaçador em cuecas pequenas. Porém ele tem muitos pentelhos no pau, mais pentelhos do que pau, e uma assustadora quantidade de pentelhos fica pra fora da cueca. Nesses momentos a região púbica dele fica parecendo o Morais Moreira na época dos Novos Baianos. Até hoje ele não se conforma com as peças que a genética pregou nele. Ele gostaria de ter barba. Ele queria ter uma barba enorme. Tipo a do Maomé. Tipo a do Ian Anderson, líder do Jethro Tull. O que é que ele ganhou? Pelos nos dedos dos pés. Ele tem muitos pelos nos dedos dos pés. Pra que tantos pelos nos dedos dos pés. Ele queria ter o peitoral cabeludo. O que é que ele ganhou? Pelos entre as nádegas. Um moicano chumacento do The Exploited entre as nádegas. Quando ele pratica algum exercício físico, e sua na bunda, os pelos ficam grudados entre as nádegas e grudados entre si. Às vezes fica difícil até andar. E assa. E dá-lhe Hipoglós. Hipoglós pra caralho. Aconselhado pelo seu pai, ele até parou de limpar a bunda com o papel higiênico. Ele limpa com a mão mesmo. Abre o chuveiro, abre as nádegas, coloca a bunda sob a ducha, pega o sabonete e lava a parada. Ele e o seu pai. Não juntos. Cada um com a sua bunda. Quando algum idiota levou essa excentricidade à baila em alguma conversa que havia garotas no meio, ele se defendeu dizendo que o Jack Kerouac e o Allen Ginsberg também limpavam a bunda com a mão. Tá certo que ele omitiu que o Jack Kerouac e o Allen Ginsberg faziam outras coisas com as suas bundas e com suas mãos e com as suas outras coisas. Mas não havia problemas, porque em todas as vezes ninguém tinha a mínima ideia sobre quem ele estava falando. Então ele perguntava “sabe o Geoff Dyer?”. E ninguém sabia quem era a porra do Geoff Dyer. “Sabe o Bruce Chatwin?” “Quem?” “Sabe o Paul Theroux?” “Sabe o David Lynch?” “Sabe o J.D.Salinger?” “Sabe o Lee Perry.” “Sabe o Cat Stevens?” “Ou o Yusuf Islam?” “Sabe o Jon Krakauer?” “Sabe o Muamar Kadafi?” “Sabe o Marcos Valle?” “Sabe o Chico Mendes?” “Sabe o Chico César?” “Sabe a Mulher Jaca?” “Ah, essa eu sei, essa eu sei.” “Então, ela também limpa a bunda com a mão.” “Nossa, que interessante.” “O Márcio Garcia também... E a Flávia Alessandra... E, às vezes, o Rodrigo Faro.” Ele queria ter pelos nas coxas. O que é que ele ganhou? Trinta e nove famílias siamesas de pentelhos no escroto. Escroto! Às vezes, na intimidade, no ônibus lotado, numa cerimônia matrimonial da qual ele é padrinho, ele coça o saco e os seus dedos ficam cheios de pentelhos. Quando uma menina que estudava com ele, uma baranga que ia pra escola com um bermudão da Cyclone chamada Andersan (a versão feminina de Anderson), comentou com ele que ele não tinha o “caminho da felicidade” - leia-se “Caminho da felicidade” o rastro de pelos que fica sob o umbigo -, ele disse: “Mas eu tenho pentelho pra caralho!” Ela disse: “Duvido”. Ele colou a mão no saco, tirou um punhado de pentelhos e jogou em cima dela. Quando uma gostosinha chamada Bruna disse que ele depilava os braços e ele respondeu que não depilava os braços, que na verdade não havia nascido pelos nos seus braços, e ela falou que ele era mentiroso, ele colocou a mão no saco e jogou uma porrada de pentelhos em cima dela. Ele encontrou alguma utilidade para os seus pentelhos. Mas naquele momento, à espera de uma provável e deliciosa parceira sexual, na expectativa de enfim copular após um hiato de, sei lá, quarenta e cinco anos, noventa e cinco anos de autopunhetação, ele tinha que aparar a parada. Ele nunca havia aparado a parada antes. E não sabia como proceder. Sempre quando a palavra depilação piscava na sua mente, ele lembrava da história do seu distante amigo Felipe. Felipe se afastou da roda de amigos na rua Rio de Janeiro para encontrar um lugar calmo para poder dar uma mijada na rua. Um amigo dele o acompanhou. Ao encontrarem um lugar propício para mijar, eles abaixaram as suas calças. Enquanto estavam mijando, o amigo de Felipe virou o pescoço em sua direção para comentar alguma coisa. Ao olhar, sem querer, ou por querer, para o pau de Felipe, ele notou que Felipe havia depilado aquela sensível região. Em forma de triângulo! Então o cara que não sou eu deu uma risadinha canalha a si mesmo e depois ficou sério, concentrado no que não sabia fazer. Ele lembrou daquela mítica Playboy da Adriane Galisteu e se deu conta de que ela havia usado gilete para depilar a sua parada cabeluda. Ao passo que ele pegou uma gilete que o seu pai usava para fazer a barba e depilou o seu pau com ela. A seco! Primeiro na região da virilha. Os seus pentelhos entrelaçavam-se no seu pau como a primavera no arame farpado nos muros da sua casa. Depois o saco. Nada de sangue, bom sinal. Depois a região pélvica. Sentiu-se uma espécie de Crocodilo Dundee devastando um pântano. Depois deu uma lavada na gilete, colocou-a no mesmo lugar no qual estava minutos atrás como se nunca houvesse saído de lá, tomou uns dois tombos no percurso até o espelho e caiu a ficha: por isso que os porn stars sempre estão depilados. O seu pau havia ficado maior do que pequeno. Ele tinha que se vestir. “Que tipo de modelito combina com o aspecto Rod Stewart jovem e Jennifer Beals fase laquê?”, ele se perguntou. “Um casaco de couro feto look? Não tenho. Um casaco com pele de tigre verdadeira? Não tenho. Um casaco com pele de tigre falsa? Não tenho. Um colant de lycra pink com uma meia-calça preta e uma bandana amarela? Não tenho. Uma regata tipo Everlast boxeador arrombada nas laterais? Não tenho. Blazer sem camiseta por baixo? Não tenho. Macacão jeans com só uma alça presa? Tenho um macacão jeans mas não tenho pelos nos peitos e só esparsos pelos nos sovacos e já botei desodorante (Italian Pine, R$ 2,40, “O desodorante dos que têm orgulho de serem italianos”) e sem pelos nos peitos e sem pelos nos sovacos e sem sovaqueira não há sentido para usar macacão. Eu posso usar...” Ele escolheu uma camiseta preta de manga comprida com a estampa do Hot Water Music. Ela adorava essa camiseta. Ela dizia que ele ficava lindo de preto. Ele botou uma calça preta. Ele caiu ao vestir a calça preta. Uma delas de cara no chão. Ele notou que, quando caía, por reflexo, ele sempre levantava a perna esquerda para o alto. Dos dois meses engessado, ele ficou o primeiro mês sem beber uma gota de álcool. Quando voltou a beber, ele mijava nos postes com a perna esquerda levantada. Houve momentos bons nesses sessenta dias no estaleiro. Além dos bons livros e dos bons filmes e das boas punhetas, ele descobriu uma característica nos seus amigos retardados da qual ele presumiu que eles fossem desprovidos: solidariedade. Eles o levavam para passear. O deixavam ficar com as pernas esticadas sobre as suas pernas no banco de trás do carro. O chamavam para jogar War na rua. Iam buscar duas cadeiras para ele. Uma para sentar e outra para ele apoiar a perna na cadeira. Quando havia churrascos, afinal, era época de Copa do Mundo, todos agiam como seus empregados. “Quer uma cerveja?” “Deixa que eu pego para você.” “Quer ajuda para ir ao banheiro?” “Apóia aqui.” “Vai querer comer o quê?” “Sai, deixa o ‘Francesco’ sentar aí!” E ele, claro, abusava quanto mais podia, como se quisesse testar os limites do altruísmo. “Pega aquela pra mim direto do sovaco do pingüim.” “Por favor, aquela bolinha de queijo esperta.” “Faz aquele prato de salaminho pra mim.” “Mais uma, por favor.” “Saiu a carne? Saiu? Faz aquele pratinho pra mim.” “Hummm... sem querer abusar, mas tu esqueceu da farofinha.” “Pode cortar a carne em picadinhos pra mim? Valeu.” Eles o levavam a um bar novo no centro que ficava no térreo de um prédio instalado a cinquenta metros da praia das Pitangueiras. Ele tinha uma cadeira para sentar, outra para apoiar a perna e mais uma para guardar as muletas. Era um bar de metaleiros New Metal. Sinuca e cigarro e banheiro sujo e porção de bata-frita com excesso de Ketchup. Os moradores do prédio jogavam ovos na clientela do bar do alto de suas janelas. E foi nesse bar que repentinamente encerrou-se a solidariedade fraterna de seus amigos para com ele. Saulo levantou da mesa, foi até a esquina e gritou: “Caralho, tem duas minas se beijando”. Ele levantou e começou a correr manquitolando como se tivesse em meio a um tiroteio. Até de muleta ele conseguiu ser mais rápido do que o Rocambole. E o pior de tudo é que era mentira. Não havia nenhuma menina se beijando com outra menina. Ele não idolatrava a imagem de Deus, ele não idolatrava a imagem de Cristo, ele não idolatrava a imagem de Nossa Senhora de Aparecida, ele não idolatrava a imagem de Buda, ele não idolatrava a imagem de James Dean, ele não idolatrava a imagem de Roberto Carlos, ele não idolatrava a imagem de Pelé nem a de Maradona e muito menos a de Ray Conniff, mas ele idolatrava a imagem de duas mulheres se beijando. E como! Ele tiraria a Niagara Falls, o Cristo Redentor, a Torre Eiffel (ou, como diria Saulo, “Torre Waffle”), o pôr do sol visto de uma gôndola em Veneza, para colocar a imagem de duas mulheres se beijando entre as dez maravilhas do mundo. Desde que elas não fossem estivadoras, não tivessem mais pelos do que ele e não tivessem tatuado sobre um dos mamilos um punhal esverdeado. Só vinte e quatro coisas o deixavam em tamanha excitação: fofocas que denunciavam o envolvimento de mulheres conhecidas em gang bang, empregadas gostosas tomando banho em duchas geladas, vizinhas fazendo topless no quintal, sexo de rua, boquete no carro, coroas gostosas com muitas jóias, sardas, gostosas suadas, vídeos de sexo amador veiculados no celular, mulheres que tomam as rédeas do ato e fazem espanhola por conta própria, pompoarismo com bolas chinesas, colegas de escritório transando no escritório sem tirar a roupa, Elizabeth Shue se banhando de uísque em Despedida em Las Vegas, a coroa do Ken Park, marquinhas de biquíni, concurso de camiseta molhada, mães gostosas amamentando em público, cruzada de pernas sem calcinha, mulheres com calça de couro, imaginar freiras gostosas, mulheres com moletom sem nada por baixo, mulheres de cinta-liga, mulheres de regata sem sutiã e b boys japoneses. Ele estava todo de preto. Camiseta preta, calça preta, cueca minúscula preta que deixava o seu pau meio que maiúsculo e um coturno preto. Um só, ele não precisava do outro. Pensando melhor, ele assemelhava-se mais com um Trent Renzor disposto a cometer alguma loucura. Tipo chupar o dedão do pé da mina, se fosse necessário. Ou até mesmo beijar alguma ferida. Ou quem sabe sugerir algemas. Velas derretendo no peito. Ou a inclusão de animais de médio porte. Ela era mais experiente no sexo do que ele. Até mesmo o Padre Marcelo Rossi era mais experiente do que ele. Por baixo, ele conhecia uns vinte e cinco caras que já haviam a comido. Fora os 1.349 que ele suspeitava. Mais os 505 que dizem as más línguas foram agraciados pela sua estupenda felação. No entanto, segundo ela, amor era só com ele. Ele não tinha dinheiro, não tinha carro, não tinha casa própria e não tinha pau. Ele não cortava o cabelo há uns sete meses, não se exercitava há uns sete anos e não transava há uns setenta séculos. Mas mesmo que ela o amasse de verdade, prometesse coisas dignas de pessoas apaixonadas, ele queria sexo seguro. Ele podia vê-la sendo enrabada por uma capivara, mas transar sem camisinha estava fora de cogitação.

(Continua na próxima segunda-feira.)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Os 1001 ensinamentos, lucubrações e idiossincrasias do solitário corredor

Número 2

Correr bêbado não é legal. Traz má reputação. Dar de cara no poste não o deixará mais bonito. Ou, se pensarmos bem, dependendo da qualidade da máscara que Deus lhe concedeu (“ah, os meus amigos me acham parecido com o Puyol”) há uma possibilidade, embora ínfima, de uma melhora no visual. Afinal de contas, a plástica do pobre é o acidente! Todo acidente é uma loteria! Perder um olho e colocar um tapa-olho: excentricidade e mistério. A mina vai olhar, enquanto você corre, e pensar com os dois botões que ela possui: “Que pirata misterioso” (para quem não é gostoso, ser misterioso é o caminho). Talvez... “Que babaca pretensioso!” (para quem não tem nada, a pretensão pode ser sua maior aliada – Ex: “Uma piada típica de Wall Street, hahahahaha”; “Manda o Matthew Barney chupar um caralho!”; “Quem mesmo? Comi. Hã? Comi. Não sei, peraí... uhhhh... ah, claro, comi. Comi. Comi. Comi. Comi a família toda”. Que tal... “Quem não tem um olho mesmo? Há, o David Bowie. Hummm, ele pode ser o meu David Bowie, mesmo barrigudo” (se bem que essa última reflexão pode ser fruto da imaginação de um pederasta).

Eu tenho uma cicatriz no rosto, sob o olho esquerdo, nada muito evidente, que pode ser considerada um charme, já que a falta de charme é a minha principal característica. Quando eu tinha 12 anos, dei de cara na lixeira em uma partida de futebol disputada na rua – a mítica (pra ninguém!) Doutor Carlos Nehring. Digamos que eu estava embriagado, não pelo álcool, mas pelo anseio de vencer a qualquer custo. O meu time perdeu e a minha cara ficou parecendo... “uma buceta!”, melífluas palavras de incentivo proferidas pelo meu pai logo após o acidente. Ironicamente, essa foi a primeira buceta a ficar na minha cara. Se não fosse pela confusão que o álcool e as drogas “não asquerosas” proporcionam na visão das mulheres, teria sido a única. Portanto, o que nos resta além de celebrarmos a existência do álcool e das drogas “não asquerosas” (asquerosas: pedra – chá de fita – cocaína – óxi - sopro do diabo – Lobão – Detonautas – Matanza – Gloria Kalil – Xuxa – 30 Seconds For Mars – José Simão – Katy Perry Ao Vivo – Katy Perry em estúdio – Paulo Vinícius Coelho – Ivete Sangalo... viva – Claudia Leite... opinativa – Esquerda... capitalista – CONAR – ONU – FMI – SFC – SPFC – Orquestra Legião Urbana – Bruno ‘Mashup’ Mazzeo – Independência Studio SP etc?) Quase nada. Videogame? Cerveja? Amendoim? Rir com os amigos? Fumar um com os amigos? Fumar um um dia inteiro com os amigos? Fumar um um dia inteiro sozinho com um engradado de cerveja e um pacote de um quilo de Amendorato? Livrarias? Ouvir música? São Paulo no feriado? Assistir a filmes bons? Assistir a séries legais? Corinthians? Futebol? Falar mal de alguém que ao mesmo tempo está falando mal da gente? Olhar bundas? (parafraseando um rapper mais conhecido pelo palitinho de marfim: “bundas, bundas, muitas bundas, bundas grandes, enormes, bundas pretas, bundas brancas, bundas com sardas, bundas com verrugas, verrugas nas bundas, bundalabundalabunda...” Parafraseando um conhecido que não terá o seu nome publicado para salvaguardar a sua reputação: “Cus, cus arrombados, cus sangrando, cus de vaca, todas as vacas e todos os cus sangrando, cus de cabrito, cus de porca, enfia a porca no cu da porca, jumentos e cus, cus coloridos, cus de pelúcia, cus assados, cus refogados, cus fritos, cus à parmegiana, cus empanados, cus e túneis, túneis de cus, cus com nome de túneis, túneis com o nome de cus, cus que falam, cus que traduzem direto do latim, cus que latem em latim, cus que cantam, coral de cus que com os cus cantam sobre cus asiáticos exilados na Itália que vendem pirataria de cus para todas as pessoas do mundo que gostam de cu etc e cu) Olhar peitos? Pensar no amor? Pensar em sexo? Pensar em sexo mais uma vez? Macarronada? Pensar em sexo mais uma vez? (Contudo já temos três punhetas num curto espaço de tempo.) Correr no final da tarde? viajar... Só nos basta celebrar o álcool. Celebrar as drogas não asquerosas. E torcer para que estejamos no lugar certo, na hora certa e com o espírito certo. Em outras palavras, não beba. Esteja alerta e reze para elas encherem a cara e fumarem tudo e escolherem você como um “bom bizarro inconseqüente engraçado” motivo para uma aposta.

(Semana que vem, o último capítulo de A história de um breve romance indie cheio de putaria grudenta. Será?)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Pesadelo em Limeira - O dia em que a esperança morreu logo na chegada - Parte 7

“E aí, Xexéo, a mamãe chegou!”

Toque do celular da distinta moça que trabalha na minha casa

A história de um breve romance indie cheio de putaria grudenta - Parte 5

Há vários anos que o esquenta deixou de ser um ritual e se tornou uma necessidade. O modo fugaz que alguns humanos encontraram para esquecer quem são. Eu me incluo nessa. Aliás, eu me incluía nessa. Agora, as minhas madrugadas de cachaça viraram noites, se transformaram em cervejas com baixo teor alcoólico e acontecem sobre um sofá de couro com a tevê ligada no Globo Repórter. Em compensação, eu não preciso mais correr atrás de mulher. Embora, no passado, no passado mais recente que o passado distante, eu também não corresse atrás de mulher. Elas que corriam. De mim. Eu nem ao menos corria atrás delas para que elas corressem de mim. Então eu me afundava na cachaça, ou na vodka, ou no rum, ou no gim, ou na maior quantidade de cervejas baratas, ou na atmosfera de um cobertor que recendia a peido estalado de ressaca, para esquecer por algumas horas que eu era o cara que não corria atrás de nenhuma menina mas que mesmo assim as meninas corriam dele.

A primeira vez que eu fiquei bêbado foi no aniversário da pin up gordinha antes citada. Na época ela não era nem pin up, nem gordinha, mas todos já sabiam que ela estava a caminho de ser uma cidadã desagradável... aos olhos. Entenda, não estou dizendo que ela é esquisita. Eu só estou dizendo que ela é esquisita e faz de tudo para ficar ainda mais esquisita. São duas coisas absolutamente diferentes. E esquisita é um eufemismo. A festa foi uma merda. A pin up gordinha estava na fase Billy Joel Armstrong. Isso mesmo, o vocalista do Green Day. Ela andava de calça jeans rasgada, camiseta preta encardida e usava o cabelo curto tingido de loiro tigrado que parecia que fora cortado por um dos ‘talentos’ sem coordenação motora do Centro Comunitário. Ela estava mais para uma Dilma Rousseff maltrapilha do para Billy Joel Armstrong. E ela não andava com punks ou com quem quer que seja que o Billy Joel Armstrong anda. Ela andava com funkeiros. Culpa da geografia. Nascer aqui dá nisso. Você escuta And You Will Know Us By The Trail of Dead e o seu melhor amigo ouve You Can Dance. Você lê as peças do Bertolt Brecht e a sua mina lê... Belo e as paradas escritas nos encartes dos cd’s dele. Você fica arrebatado pelo diário de Anne Frank e a sua colega de trabalho fica arrebatada pelas confissões do Frank Aguiar. A última vez em que trombei a pin up gordinha foi numa roda de beck na praia do Tombo em algum réveillon deste século. Ela me viu fumando um e disse “olha só, quem diria, é você mesmo, Leonardo, quem está fumando um beck?”, “Não, é o Seal!”.

A segunda vez em que fiquei bêbado foi numa festa de quinze anos espírita (é, isso existe). Tirando a parte em que a família da mina que fazia quinze anos ficou invocando, antes da valsa, todos sentados em volta de uma grande mesa branca enquanto os convidados se perguntavam se ia rolar a brincadeira do copo, as almas dos familiares que não puderam em vida presenciar tamanho acontecimento; tirando a parte na qual eu quase botei fogo no meu par (sim, eu já estava bêbado, naquela época tudo acontecia mais rápido, a palavra ética era tão compreensível quanto uma aula de ética na faculdade); tirando o absurdo momento no qual UNESCO despirocou a boiola ao rasgar com raiva caliente a camisa social branca com a qual estava caracterizado como se soubesse que estava sendo filmado para o novo clipe dos Papaquitos por conta do questionável ritmo alucinante que ecoava das caixas de som de autoria do até então macho Rick Martin; a festa foi da hora. Eu peguei num peitinho. Eu já havia pegado num peitinho, da minha primeira namorada, mas esse era diferente, era triangular, e eu o peguei enquanto estava me preparando para dançar valsa, e não foi o peitinho da mina com a qual estava dançando, foi da outra que estava atrás de mim. E não era um peitinho, era um peitão, pois a minha ex-namorada daquela época fazia ginástica olímpica e você tá ligado como o peitoral das ginastas é para dentro. Eu fiquei muito mais bêbado do que a primeira vez. Quando me deixaram em casa, eu tentei sair pelo vidro aberto do carro ao invés de sair pela porta. E saí pelo vidro aberto do carro. E, quando entrei em casa, eu tentei me jogar na piscina, mas acabei tropeçando na própria embriaguez e indo parar no jardim. Ao escutar o barulho, o meu pai levantou da cama para ver o que tinha acontecido. Ao olhar para o quintal, eu fiquei miando como um filhote de gato jogado dentro de um jardim cheio de espinhos e o meu pai acabou aceitando as idiossincrasias da natureza e voltou a dormir. Mas o melhor mesmo da festa é que foi a primeira vez que fui abençoado pela manifestação corporativista mais bela que a nossa sociedade foi capaz de criar: a confluência garçoniana. Garçoniana é relativo a garçons. A confluência garçoniana acontece no momento crítico da festa em que ninguém consegue mais beber, menos você, ou, nesse caso, eu. Eu estava lá disposto. Eu estava de pau duro e disposto. Suado e disposto. Empenado e disposto. Com quatorze anos e disposto. Ainda com quatorze anos e já empenado. E o Brasil não acha nada absurdo que o seu cachorro esclerosado de 17 anos de idade penetre na sua filha de nove anos que pira naquele vídeo da Cristina Aguilera no qual ela luta boxe ao mesmo tempo em que quer chupar um pau de um imigrante ilegal da República Dominicana. Você acha que eles se importariam com a embriaguez de um pré-adolescente? Sim, eles se importariam. Sim, eles se importaram. Pois depois de serem esnobados por quase todos os convidados da festa que, ao verem um garçom equilibrando com classe uma bandeja cheia de garrafas de 600 ml de cerveja, escondiam seus copos empapuçados, enfurnavam-se no banheiro, enfurnavam as suas línguas na boca de outras pessoas que também enfurnavam as suas línguas na boca de outras pessoas e assim sucessivamente, eles viram que pelo menos havia alguém naquele lugar, a tão subestimada exceção, que valorizava a classe. Então eles passaram a me servir. Então eles me instalaram sozinho em uma mesa gigante que ficava próxima à cozinha. Então eles colocaram quatro cervejas dentro de um balde cheio de gelo. E amarraram um babador em volta do meu pescoço. E colocaram na minha frente uma bandeja fumegante de bolinha de queijo. E tiramos várias fotos.

Foto 1: Eu comendo três bolinhas de queijo de uma vez só enquanto virava no gargalo uma garrafa de 600 ml de cerveja.

Foto 2: Eu virando tudo que estava dentro da minha boca em cima da mesa.

Foto 3: Eu sentado em cima da mesa, com a camisa aberta, com o pescoço esticado olhando para o teto enquanto os meus olhos estavam fechados e a minha boca fazia um biquinho, não, eu não estava pagando de modelinho, eu estava arrotando.

Foto 4: Eu tentando beber o conteúdo do copo com o fundo do copo virado para cima.

Foto 5: Eu me dando conta que dá para ver através do fundo do copo que o conteúdo do copo foi parar no meu colo.

Foto 6: Eu fazendo sinal de positivo na fila do banheiro das mulheres.

Foto 7: Eu puxando o coro do “por que parou, parou por que, por que parou, parou por que”, a fila não se movia.

Foto 8: Eu mijando sentado no banheiro das meninas.

Foto 9: Eu pegando emprestado o batom de uma mina que conheci no banheiro.

Foto 10: Ela tomando o batom da minha mão para mostrar como se faz.

Foto 11: Eu e ela dando um beijo no espelho e deixando as nossas marquinhas.

Foto 12: Eu, a minha nova amiga, a Kelly (vulgo Kellínguiça) e a Soraia (vulgo Boca de Veludo) discutindo os motivos que fizeram a Rosana (a aniversariante) beijar o buraco negro que é a boca do Alemão Peão.

Foto 13: Saulo pegando a Boca de Veludo enquanto eu apontava o dedo para o casal em ação e olhava para a lente da câmera como quem diz: “Vai memo, maluco!”.

Foto 14: Rick me perguntando com quem eu havia pegado o batom que coloria a minha boca.

Foto 15: Rick com o batom na mão entrando no banheiro. Dos homens.

Foto 16: Rick saindo do banheiro com o nó da gravata exageradamente desfeito, com a camisa artificialmente escancarada, com braguilha obstinadamente esticada, com marcas de batom em forma de boca no pescoço, nas bochechas (Rick desenha muito bem), até mesmo na boca (quem consegue deixar uma marca de batom na boca de uma pessoa em forma de boca?), vociferando em desespero que havia sido atacado por um monte de mina no banheiro, “Olha só o que essas malucas fizeram comigo! Me atacaram enquanto... (ele sabe mentir muito bem) enquanto... enquanto estava tirando um cravo do queixo”, “Muito sexy, Rick, elas não conseguiram se conter ao vê-lo tirando um cravo preto do queixo”, “Deveriam ter tirado uma foto dessa cena para vendê-la depois como afrodisíaco”, “Que cena? O quase estupro que sofri?”, “Claro que não, estou falando da extração de cravo em frente ao espelho”, “O estranho, Rick, é que elas o atacaram, ou melhor, supostamente o atacaram no banheiro dos homens”, “É, bem, elas... elas... elas... foram mijar lá porque... porque... ah, sei lá, é sério, elas me atacaram, eu vi tudo, eu tava lá, eu...”.

Foto 17: Todo mundo tirando um sarro de Rick embora de modo muito mais ameno do que o sarro que, anos depois, iria mudar a vida de Rick para sempre.

Se por um lado há o excesso, a solidariedade em demasia, há também a repressão, o racionamento total de serviço, que se dá pela temida evasão garçoniana. Foi o que aconteceu na terceira vez em que fiquei bêbado, sem dúvida alguma, a mais nojenta (não tão repulsiva quanto a segunda história que ainda não tive coragem de contar para vocês, eu não esqueço as minhas dívidas), vômitos, sangue e miojo boiando numa tigela cheia de água de torneira. Dessa vez, foi a festa de quinze anos da mina que foi o meu par na festa de quinze anos espírita. Exato, a mina que eu quase botei fogo naquele ritual ridículo de acender a vela. Luana, o nome da vadia, quando tive a oportunidade, eu deveria tê-la queimado viva. Ela simplesmente proibiu todos os garçons de nos servir. “Vocês não vão estragar a minha festa!” Então fomos atrás de quem nos servisse. No bar da rua de trás. De Velho Barreiro. Purinha. Duas garrafas. Eu, UNESCO, Testa, Ford Models do Tombo, Negão, Carmelino Pão e Vinho e Mentira de Angola. (Mentira de Angola... o bisavô de Mentira de Angola lutou na Guerra de Angola. Depois de se perder do resto do regimento, ele foi cercado por cinqüenta soldados inimigos. Sem ter o que fazer, ele apertou o gatilho de sua espingarda de última geração do século XIX e girou o corpo em 360º como uma componente da ala das baianas da Mocidade Amazonense. Evidente que ele matou todo mundo. O irmão mais velho do Mentira de Angola namorou a Luana Piovani. Basta olhar o irmão mais velho do Mentira de Angola para constatar que ele não namorou a Luana Piovani. Mentira de Angola existe!) Sete copos de plástico para sete insurgentes das causas adolescentes que nem imaginavam que em menos de sete minutos e com bem menos da metade de sete doses demonstrariam bem mais de sete atitudes indecorosas para destruir um evento em menos de sete segundos.

Atitude indecorosa número 1: Fomos beber em frente o local da festa. Como forma de protesto. Recepcionando os convidados.

Atitude indecorosa número 2: Cada um tomou pelo menos cinco doses.

Atitude indecorosa número 3: Eu tomei dez. O meu recorde desde então. Pretendo não ter motivos para batê-lo. Na idade adulta, dez doses significa desespero.

Atitude indecorosa número 4: Mentira de Angola foi o primeiro a vomitar.

Atitude indecorosa número 5: Testa, o homem que, na oitava série, na oitava vez que cursou a oitava série, escreveu um dos textos mais revolucionários da história da literatura moderna que não se tem notícia. Aconteceu na aula de redação. Tínhamos que continuar com uma idéia que começava assim: O cinema estava lotado. Quase todas as pessoas estavam dormindo. Quando, de repente... a partir daí teríamos que colocar a cabeça para funcionar. E Testa, do jeito que lhe é peculiar, colocou a dele. Quando o quando, de repente, apareceu diante dos seus olhos, ele... poderia ter se safado com alguns dinossauros. Dinossauros são sempre assustadores. Eu tenho muito medo de dinossauros, menos os feitos pela rede Record, ou melhor, menos os defeitos feitos pela rede Record, a Tevê que mais empobrece o Brasil, e a evocação dos dinossauros não seria nada absurda para a mente de uma pessoa que cursava a oitava série, tudo bem, ele já estava com uns sessenta anos e ainda estava na oitava série, e parecia que ele estava querendo se aproximar do célebre Brian, que, apesar do nome gringo, é até hoje considerado o homem mais burro da história da Ilha de Santo Amaro, com 21 anos, Brian ainda estava na primeira série, tirando 0, quem freqüentava o antigo parquinho do centro sabe a quem estou me referindo, era ele quem ficava em pé no meio do brinquedo Samba, aquela porra redonda que girava sem parar enquanto um monte de luz de puteiro piscava de modo intermitente e um poperô de teclado mequetrefe embalava o enjôo, com o semblante tão vivaz quanto a máscara do Mike Myers, o serial killer do filme Halloween, Brian era um psicopata, até Sarachú temia Brian, o Guarujá temia Brian, o mar temia Brian, Brian era aquele tipo de cão raivoso que até o próprio dono tem medo, a caneta de Brian tinha medo de Brian, por isso que Brian sempre pedia caneta emprestada, e as canetas emprestadas não queriam ser emprestadas para Brian, as cuecas de Brian tinham medo de Brian, as unhas de Brian tinham medo de Brian, o cérebro, ou o que sobrou dele quando Brian veio à luz, também tinha medo de Brian, quando chovia, a chuva não molhava Brian, porque a chuva também tinha medo de Brian, portanto, parecia que Testa queria se aproximar da marca de Brian, e Testa também era assustador, todo mundo tinha medo do Testa, eu não tinha porque ele era meu amigo, e eu o salvei da morte quando ele engasgou na classe com um pedaço caudaloso de catarro de uma mal curada pneumonia, e eu peguei uma mina que eu não curtia umas nove vezes porque a prima dela só ficaria com o Testa se eu ficasse com a prima dela, e eu tinha uma dívida com o Testa, o Testa me salvou de ser linchado quando certa vez me acusaram injustamente de ter cuspido na cabeça de uma mina no colégio, e Testa é a única pessoa que conheço que foi expulsa do colégio umas onze vezes pelo diretor que parecia o Steven Seagal (à exceção o modo destemperado de agir que não era de um lutador de filmes de ação, mas de um design de interiores com o ego de um cenógrafo do Ballet Bolshoi) mas que mesmo assim continuou indo, fingindo que assistia às aulas, fingindo que não batia por maldade na ala dos punheteiros que entrava em ação com as suas Playboys com cola Print natural na hora do recreio, fingindo que não roubava para uso próprio os engradados de refrigerante do caminhão da Coca-Cola, e se fingindo colericamente surpreso quando diziam a ele que ele havia repetido de ano mais uma vez, mas não foram só essas manifestações antissociais que tornaram Testa um pretenso Brian, o trunfo de Testa para tentar superar a infâmia que era Brian é que ele falava umas paradas nada vê, e Brian não falava umas paradas nada vê porque a voz de Brian também tinha medo dele: uma vez, quando estávamos andando pela rua a caminho da escola, nós passamos por uma menina muito magra, o bastante para Testa fazer o seguinte comentário nada vê: “Nossa, essa mina é mó Raquítima”. Raquítima! Jamais a voz de Brian teria coragem de se pronunciar dessa forma. Quando, a pedido do Barbinha Canalha na Cara Inchada de Chicano, Testa escalou a formação dos Beatles, saiu isso: “na guitarra e vocal, John Bennon”, Bennon!, “no baixo e vocal, Paul Macartsley”, Macartsley!, “na bateria, Bingo Star”, Bingo! Contudo, eu considero essa história falaciosa. Em primeiro lugar, eu não estava lá para testemunhar. Eu não minto, eu só aumento um pouquinho, eu gostaria de usar esse poder para aumentar um pouquinho o meu pau, mas não dá certo. Em segundo lugar, Barbinha Canalha na Cara Inchada de Chicano achava que os Beatles eram um trio, porque ele ignorou completamente a existência de George Harrison, o meu beatle preferido, e Barbinha Canalha na Cara Inchada de Chicano tem até hoje como banda predileta o Pavilhão 9, e como ídolo supremo, Marinho, ex-baixista do Yo-Ho Delic e do Pavilhão 9. Quando Testa trabalhou algumas semanas em uma sorveteria no Tombo, e foi questionado por uma cliente se lá na sorveteria havia toalete, ele respondeu essa parada nada vê: “Toalete? Não, ainda não temos esse sabor”. Quando, na viagem de formatura do terceiro colegial (Testa conseguiu se formar, o nosso colégio era tão altruísta que, além de garantir a formação do Testa, ele nos dava a possibilidade de ficarmos em recuperação final em todas as matérias, e, já que estamos falando do Testa, hoje ele é casado e tem duas filhas, agora, onde Brian está, eu não sei, a única coisa que tenho certeza é que ele não está morto, pois até a morte tem medo de Brian), nós conversávamos com duas meninas de uma estranha cidade batizada falicamente de Rolândia, e elas nos perguntaram como era morar no litoral, ele lançou essa parada nada vê: “Nós, que moramos em uma cidade litorística...”. Litorística! Enfim, quando o quando, de repente, surgiu como uma missão de vida ou morte diante dos olhos confusos do Testa, ele teve que lançar a parada nada vê mais parada nada vê de toda a galáxia: Quando, de repente, apareceu Guiler (o nome desse soldado detentor de uma magia apelativa do Street Fighter ainda gera muita discórdia no mundo com cheiro de comida delivery dos aficionados por videogame, gente boiola da estirpe do Rocambole, Telmo e Carmelino Pão e Vinho, mas Guiler eu sei que não é), Chong-Li (porra, Testa, até eu sei que é Chun-Li), Braddock (ahhhh, Testa, Braddock é o Chuck Norris, não o boxeador negão lerdo pra caralho), Sangief (só faltou trocar o S pelo Z, por pouco), Branca (havia uma mina que andava com a gente cujo nome era Branca, eu acho que todo mundo queria pegar aquela mina, ela era gatinha, branquinha e sardenta, não verde e mostrenga, embora ele possa ter confundido com outra mina que andava com a gente cujo nome fora carinhosamente rebatizado de Cabelo do Cu do Urso, e depois, na ocasião em que ela raspou o cabelo do cu do urso, Daúde Pós-Apocalíptica) então, foi assim que sucedeu-se o quando, de repente, do Testa, ele resolveu acordar a galera dorminhoca do cinema com os personagens do Street Fighter, e o mais impressionante, o que torna essa história um dos maiores monumentos da literatura moderna de todos os tempos que não se tem notícia, ou melhor, um dos maiores monumentos da literatura infantil retardada babona de todos os tempos que não se tem notícia, é que ele errou tudo, do começo ao fim, inclusive o próprio nome, ele esqueceu o penúltimo sobrenome, de modo involuntário, e o mostrou pra mim com orgulho, como se fosse da hora mostrar uma das suas filhas que por uma rara armadilha agourenta do destino tivesse emergido ao mundo com um bigode de chinês e com uma tromba de elefante entre as pernas. E por que diabos eu comecei a falar do Testa? Ah, sim, o Mentira de Angola foi o primeiro a vomitar, e o Testa, que não pode ver ninguém vomitando (outro indício de que Testa jamais seria um Brian, o próprio vômito de Brian tem medo de Brian), também vomitou.

Atitude Indecorosa Número 5: Mentira de Angola vomitou, Testa viu Mentira de Angola vomitando e também vomitou, Ford Models do Tombo não agüentou testemunhar os dois vomitando e também vomitou.

Atitude Indecorosa Número 6: Mentira de Angola vomitou, Testa viu Mentira de Angola vomitando e também vomitou, Ford Models do Tombo não agüentou testemunhar os dois vomitando e também vomitou, Negão não suportou o quadro que descortinava-se à sua frente pincelado com uma fusão de maisena estragada e vísceras e se sentiu obrigado a jorrar tudo na calçada.

Atitude Indecorosa Número 7: Mentira de Angola vomitou, Testa viu Mentira de Angola vomitando e também vomitou, Ford Models do Tombo não agüentou testemunhar os dois vomitando e também vomitou, Negão não suportou o quadro que descortinava-se à sua frente pincelado com uma fusão de maisena estragada e vísceras e se sentiu obrigado a jorrar tudo na calçada, UNESCO sucumbiu ao vomicídio coletivo.

Atitude Indecorosa Número 8: Mentira de Angola vomitou, Testa viu Mentira de Angola vomitando e também vomitou, Ford Models do Tombo não agüentou testemunhar os dois vomitando e também vomitou, Negão não suportou o quadro que descortinava-se à sua frente pincelado com uma fusão de maisena estragada e vísceras e se sentiu obrigado a jorrar tudo na calçada, UNESCO sucumbiu ao vomicídio coletivo, Carmelino Pão e Vinho não aceitou que eu seria o único a não vomitar, portanto ele apelou vomitando e andando na minha direção, tal qual um zumbi com quase dois metros de altura acometido por uma crise de congestão crônica, enquanto tentava urrar Orgasmatrow.

Atitude Indecorosa Número 9: Mentira de Angola vomitou, Testa viu Mentira de Angola vomitando e também vomitou, Ford Models do Tombo não agüentou testemunhar os dois vomitando e também vomitou, Negão não suportou o quadro que descortinava-se à sua frente pincelado com uma fusão de maisena estragada e vísceras e se sentiu obrigado a jorrar tudo na calçada, UNESCO sucumbiu ao vomicídio coletivo, Carmelino Pão e Vinho não aceitou que eu seria o único a não vomitar portanto ele apelou vomitando e andando na minha direção, tal qual um zumbi com quase dois metros de altura acometido por uma crise de congestão crônica, enquanto tentava urrar Orgasmatrow, mas foi em vão, eu não vomitei, eu não sinto nada ao ver outras pessoas vomitando, eu fui, há alguns anos, a um mini-festival em Santos no qual uma banda punk do ABC tocou cujo vocalista vomitou sobre a fatia da platéia que estava mais próxima do palco se acotovelando e a platéia atingida manifestou-se em resposta pegando com a mão alguns restos de vômito que encharcavam as suas cabeças e os jogando para o alto como se fossem confetes de carnaval atiradas por crianças fantasiadas de pirata, mesmo de longe, dava para discernir uma porção de arroz deformada, sopa de feijão preto, bacon murcho, farofa com creme de leite... além do mais, eu tenho o costume de olhar para a agulha entrando na minha veia quando faço exame de sangue, e eu sou o primeiro a me prontificar na ocorrência de matar uma barata e faço questão de pegá-la com a mão antes de jogá-la no lixo. Eu só tenho medo de rato. Qualquer rato. Até do Ratatouille. Até do Fievel. Até do Mickey. Até do Stuart Little. Até do Charopinho (“Me chamando...”). Do Mestre Splinter eu não tenho. Ele só quer o nosso bem.

Atitude Indecorosa Número 10: os convidados foram obrigados a se desviar do lago de vômito deixado pelas vítimas da evasão garçoniana.

Atitude Indecorosa Número 11: UNESCO, ao atravessar, de modo triunfante, a porta de entrada do salão da festa, que era de ferro, conseguiu dar uma canelada na quina da porta, justamente a canela que tinha uma grande e feia verruga, que na época chamávamos equivocadamente de berruga, o bastante para a verruga estourar e UNESCO ficar com a canela jorrando sangue até o fim da festa. Beautiful.

Atitude Indecorosa Número 12: Testa interrompeu o xaveco que dava em Bruna (gostosíssima, canalha e com uma flor roxa tatuada um pouco acima do cóccix) para vomitar no ventre esculpido da mesma. Testa querendo superar Brian.

Atitude Indecorosa Número 13: Eu tomando dez foras consecutivos da Bruna.

Atitude Indecorosa Número 14: Eu tomando o décimo primeiro fora.

Atitude Indecorosa Número 15: Eu tomando mais 13 foras seguidos. Da Bruna.

Atitude Indecorosa Número 16: Finalmente Bruna topou ficar comigo.

Atitude Indecorosa Número 17: Entretanto, bem no momento em que eu iria beijá-la, começou a rolar na pista Hole In My Soul, do Aerosmith, portanto eu tive que correr em direção a pista, eu simplesmente amo essa música, eu simplesmente acho a pior fase artística do Aerosmith a melhor fase.

Atitude Indecorosa Número 18: Quando voltei, Testa estava engolindo a Bruna para depois vomitá-la na minha cara.

Atitude Indecorosa Número 19: Eu, Carmelino Pão e Vinho e Ford Models do Tombo fomos dormir na casa do UNESCO.

Atitude Indecorosa Número 20: Ford Models do Tombo perguntou: “Quem está com fome?”.

Atitude Indecorosa Número 21: Eu respondi: “Eu!”.

Atitude Indecorosa Número 22: Ford Models do Tombo disse que ia preparar um delicioso miojo.

Atitude Indecorosa Número 23: Ele encheu uma panela gigante com água de torneira turva e jogou uns 10 miojos. Não dez sacos de miojo, mas dez miojos avulsos. Ninguém teve a inteligência de perguntar de que lugar ele exumou aqueles miojos.

Atitude Indecorosa Número 24: Ford Models do Tombo gritou, “Tá pronto!”, e o que vi na minha frente foi um prato grande de alumínio usado para depositar ração de cachorro transbordando de água cheia de cabelo e com uns três miojos boiando.

Atitude Indecorosa Número 25: Eu finalmente vomitei sobre os três miojos de todo mundo. Quatro, no caso de Ford Models do Tombo, regalia do chefe. Eu só não fodi o nosso jantar porque, além de a fome ser tamanha e de estarmos esgotadamente embriagados, nós comemos mesmo assim.

Quem ficaria bêbado em uma festa de criança? Eu. Tem coisa melhor do que brigadeiro, chopp mexicano com gosto de urina de fralda geriátrica e videokê? Certo, qualquer merda de cerveja, inclusive Kronenbier, é melhor do que aquele chopp mexicano com gosto de urina de fralda geriátrica. Certo, buceta é melhor do que brigadeiro. Contudo, não há nada que supere um bom videokê. Confesso, eu amo videokê. Quando tem videokê, só eu quero cantar. E se eu tiver que dividir o microfone com você em alguma canção, eu não irei deixá-lo cantar. O meu ego de cantor frustrado irá atropelá-lo em cada estrofe. E quando não for a minha vez, eu irei gargalhar na sua cara. Eu direi que a sua escolha de música foi péssima. Que a sua apresentação foi um lixo. E se nada disso o intimidar, eu direi que a sua mãe é uma vaca! Eu sempre canto Guns. Eu sempre canto Paradise City. Eu sempre canto Whitney Houston. Eu sempre canto aquela música da trilha sonora do filme O Guarda-Costas. Eu sempre canto Alejandro Sanz. Eu sempre canto No More Tears, do Ozzy. Quando tem Mr.Big no aparelho, eu sempre canto. Eu nunca consegui cantar Ugly Kid Joe porque até hoje não consegui encontrar nenhum aparelho de videokê que tenha Ugly Kid Joe. Eu canto todas as baladas do Aerosmith. Eu canto o tema da Bela e A Fera. Eu canto Negritude Jr. “Não dança a nossa dança, o amor é meu segreeeeduuuuuu, nos olhos de esperança, mas tenho meeeeeedo.” Ultimamente ando cantando Tihuana e sua melíflua canção Pula pu-pula filha da pula. Não há letra no mundo da música que faça menos sentido do que essa. Eu não conheço ninguém que, quando está chapado, quer ficar pulando, xingando e batendo nos outros. Mas cantar essa música no videokê é muito divertido. É como encher uma bexiga com água e jogá-la na cabeça azulada de uma velha beata do alto de um prédio. Tudo o que odeio ouvir eu amo no videokê. Tudo que é bom faz mal. Portanto, se houver videokê, eu me embriago sem problema algum de chopp com gosto de urina de fralda geriátrica, me entupo de brigadeiro e mino qualquer remota possibilidade de comer uma buceta. A festa foi da irmã do Saulo, a Augusta, ela estava fazendo dez ou onze anos. Essa foi a quarta vez em que fiquei bêbado e a fama de bebum já começava a me preceder. Eu estou em todas as fotos da festa. Ora cantando sozinho no videokê. Ora cantando sozinho junto com outras pessoas que tentavam mas desistiam de cantar ao meu lado. Ora vaiando as crianças que estavam cantando no meu lugar. Ora sendo vaiado pelas crianças enquanto estava no meu lugar. Ora sendo esculachado pelas mães das crianças. Ora convidando as mães das crianças para tomarem um banho comigo na banheira do quarto dos pais do Saulo. As fotos dessa festa constroem com exatidão o poder vexatório da cronologia etílica. No começo da festa, eu estou penteado, ereto, arrumado e cheiroso. No meio, estou descabelado, suado, esgarçado, fedido e com o rosto tão grande e vermelho quanto o testículo esquerdo do Kid Bengala. No fim, eu estou jogado no sofá sem camiseta e com o cabelo ensebado de vômito. Aconteceu o seguinte, eu cheguei a um ponto no qual eu não conseguia mais andar de olhos abertos. Se eu abrisse os olhos, eu tinha a sensação de que estava andando de ponta cabeça. Se eu deitasse, eu tinha a sensação de que estava deitado no teto e o teto estava no chão e o chão estava no teto. Ou seja, só vomitando para aplacar toda essa atmosfera kafkiana. Então eu fui até o banheiro do Saulo, tranquei a porta, tudo isso com os olhos fechados, como um cego alcoólatra, e, quando abri os olhos, não sei que me deu que acabei olhando para o teto e prontamente ignorando a existência da gravidade e vomitando para o alto. O vômito, como não podia deixar de ser, caiu no meu cabelo, colou as minhas pálpebras e banhou a minha camiseta branca da Sims. (Não, essa não é a segunda história nojenta.) Depois eu tive que esconder a camiseta vomitada no fundo guarda-roupa do Saulo. Ela só foi encontrada cinco anos depois pela avó do Saulo. Ela lavou a camiseta e a entregou a mim. Até hoje a camiseta existe e agora ela é usada como pijama.

Por que eu fiz você perder minutos preciosos da sua existência ao contar essas histórias repletas de orgias alcoólicas, a única modalidade de orgia da qual participei? Só para informá-lo que eu tenho total conhecimento das fases pelas quais o cidadão comum tem que passar para ficar indubitavelmente bêbado. E Rick, quando pegou a Cristina, não passou por nenhuma delas. Mesmo que até hoje insista com teimosia que foi vítima das vicissitudes por vezes escabrosas da inconseqüência etílica.

(Continua na próxima segunda-feira. Assim espero.)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Tudo É Albino Menos Rebeca recomenda:

Purgatório Americano

Fazia tempo que eu não lia um livro que me deixasse, de certa forma, apreensivo e feliz. E o melhor de tudo é que se trata de uma obra de um autor que até então me era desconhecido (escrevo este texto no dia 23 de novembro de 2009). John Haskell tem 51 anos e é americano da Califórnia. Vive no Brooklin e também é ator, dramaturgo e artista performático. O seu primeiro livro, Eu Não sou Jackson Pollock, foi lançado no Brasil, via editora Rocco, em 2006. No entanto, ainda não tive a oportunidade de lê-lo. Já Purgatório Americano, lançado aqui em 2009 pela mesma editora, me deixou em êxtase. Êxtase mudo. Nada de gritinhos agudos, palminhas rápidas e estridentes, e pulinhos que quase não saem do chão. Puro respeito e admiração contida.

O casal para o carro no posto de gasolina. O marido sai do carro e vai até a loja de conveniência comprar algumas coisas para comer durante o trajeto. Olha as embalagens, escolhe os produtos com cuidado, pega um pacotinho de amendoim, uma barra de cereal e uma bebida supostamente energética. Vai ao caixa, paga, sai da loja e nem o carro e nem a sua mulher estão mais lá. Nem em volta. Sumiram! Ele espera. Liga para o celular dela. Desligado! Espera. Pode ter havido algum problema com o carro e talvez ela tenha ido solucioná-lo. Espera. De novo liga para o celular dela. Desligado. Liga para a casa, quem sabe ela esqueceu alguma coisa importante em casa e foi buscar. Ninguém atende. Espera. Ela pode ter sido seqüestrada e levada para algum lugar longínquo onde vão colocá-la sobre uma toalha de piquenique e sabe-se lá o que vão fazer com ela. Espera. Ele volta a pé para a casa. É início de primavera em Nova Iorque mas ainda faz frio. Ele percebe que o dia está se esvaindo e se sente cada vez mais temeroso com a sensação de invisibilidade que o apossa aos poucos. Chega em casa, senta na sua poltrona favorita e espera. A mãe dela liga, afinal, eles estavam indo encontrá-la, mas ele não faz questão de atender. Já é noite, ele tenta dormir, mas não consegue. A mãe dela liga novamente e ele não faz questão de atender novamente. Um novo dia surge, ele levanta da vigília, vai até o quarto da mulher e acha um mapa. No mapa, há um círculo feito com uma caneta hidrocor sobre a cidade de Nova Iorque. Do círculo, sai uma linha traçada até Lexington, Kentucky, cidade que também estava marcada com um círculo. E na cidade de Boulder, que fica em Colorado, também. Na Costa Oeste, em San Diego, Califórnia, também. Ele não lembra de ela conhecer alguém em Lexington. Ele não lembra de ela conhecer alguém em Boulder. Entretanto, em San Diego, na Califórnia, foi onde ela nasceu. Ele decide ir atrás dela. Ele decide seguir o mapa traçado por ela. Compra um carro usado e leva consigo objetos que o fazem lembrar dela. Uma caixa com livros de bolso. Um envelope com fotos. Fitas cassete. Roupas. Saco de dormir. Um vaso com um cacto. Binóculos. Um laptop e o bandolim do pai dele. Objetos, só objetos, que o fazem lembrar dela - que o fazem lembrar de Anne.

Purgatório Americano é um livro feito para ser lido de uma só vez. Como um filme que não o deixa nem sequer ir ao banheiro. Mas não foi isso o que eu fiz. Eu gosto de retardar o processo quando o livro é maravilhoso. Eu gosto de repensar o livro enquanto faço outras coisas que devem ser feitas todos os dias. Eu não quero que ele acabe rapidamente. A realidade-fictícia paralela deve ficar em suspenso para compensar o tédio que é trabalhar durante um mês para ganhar num específico dia de cada mês. Às vezes não consigo lembrar do rosto de algumas mulheres que amei. Foi tudo tão intenso, fugaz e impulsivo que os detalhes se perdem, as pintas em lugares únicos, as lascas na dentição, o tremelicar dos lábios, o formato dos dedos dos pés, os perfis recorrentes, o tom de voz ao telefone, as manias surgidas da mente que são transmitidas ao corpo, os múltiplos hálitos correspondentes à determinada hora do dia, o comprimento do cabelo, o pêndulo do caminhar, a postura, o som da risada, o indivíduo único vira um borrão comum – a pressa é inimiga da perfeição das boas lembranças que não queremos esquecer sobretudo nos momentos em que nos vemos no vazio dos outros. Purgatório Americano é um livro para ser lido para sempre - e um ótimo exemplo da inutilidade da crítica literária nacional que, simplesmente, ignorou o lançamento de uma das mais instigantes e belas obras lançadas por um autor no século XXI!

(Semana que vem continuo com a confusão que é aquela porra de Pesadelo em Limeira - O dia em que a esperança morreu logo na chegada. Faltou-me tempo para escrever na semana passada.)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pesadelo em Limeira - O dia em que a esperança morreu logo na chegada - Parte 6


A história de um breve romance indie cheio de putaria grudenta - parte 4

O Sábado de 2004 – 17:52

Eu: Alô?

Rocambole: Por favor, o Leonardo está?

Eu: Peraí, vou chamar ele, o... sou eu, caralho, quem é?

Rocambole: É o Rocambole, porra!

Eu: Fala, obeso, qualé?

Rocambole: Tá com a voz diferentona.

Eu: É, eu tava... chupando um pau.

Rocambole: Pode crê, ô, se liga, onde tu tá?

Eu: Pescando.

Rocambole: Sério?

Eu: Claro que não, porra, to em casa, tu ligou pra minha casa.

Rocambole: Eita, eu pensei que tinha ligado pro teu celular.

Eu: Eu não tenho celular.

Rocambole: Não?

Eu: Não. Se liga, Rocambole, tem certeza que é comigo memo que tu qué falá?

Rocambole: É sim, porra, mó doidera... Se liga, o que tu vai fazer hoje?

Eu: Redundância.

Rocambole: To ligado... O que é isso?

Eu: Redundância.

Rocambole: Sei... mas o que é isso?

Eu: Redundância.

Rocambole: O que é isso?

Eu: Isso

Rocambole: O quê, porra?

Eu: Repetição. A mesma coisa de sempre. Ou seja, merda nenhuma. Não vou tocar em nenhum peitinho. Não vou comer nenhuma bucetinha. Não vou sequer conseguir um selinho safado. Mas vou fazer tudo isso na punheta, sem selinho, eu quero um puta beijão, deixa eu ver... daqui a nove minutos.

Rocambole: Ô, então, vamo pra balada?

Eu: Eu não vo nem fudendo à Lucky Scope.

Rocambole: Não é na Lucky Scope, caralho, é em Santos.

Eu: Qual vai se?

Rocambole: Tá ligado o meu trampo?

Eu: Deixa eu pensá... Não!

Rocambole: Vai rolá uma festa do meu trampo na Breezy e vai rolá vipeira pra nós.

Eu: Na faixa?

Rocambole: 20 mango de consuma + camarote.

Eu: To dentro.

Rocambole: Beleza.

Eu: Liga pro resto da molecada.

Rocambole: Vo ligá agora, pode deixá.

Eu: Que horas tu vai passá aqui?

Rocambole: Umas 21:30.

Eu: Beleza, 22:30. Falow.

Rocambole: Falow.


18:01

Nestor: Alô?

Rocambole: Por favor, o Nestor está?

Nestor: Sou eu.

Rocambole: Fala, danadinho, se liga, vamo pra balada?

Nestor: Quem é que tá falando?

Rocambole: É o Rocambole, caralho.

Nestor: Eba.

Rocambole: Hahahaha... ô, vamo pra balada?

Nestor: Não.

Rocambole: Não é na Lucky Scope não, caralho.

Nestor: Não.

Rocambole: Na Breezy, só vinte de consuma e camarote.

Nestor: Não.


18:07

Telmo: Alô?

Rocambole: O Telmo está?

Telmo: Quem é?

Rocambole: É o Rocambole.

Telmo: Fala, gordinha, e aí?

Rocambole: Tudo beleza. Ô, então...

Telmo: Se liga, Rocambole, tu já jogou Silent Hill 3?

Rocambole: Puta, cara, ainda não, por que, tu já jogou?

Telmo: Eu comprei.

Rocambole: Caralho! Sério?

Telmo: É muito foda!

Rocambole: Eu li a resenha na Game Power, a parada parece assustadora.

Telmo: É sinistro, Rocambole.

Rocambole: Pode crê.

Telmo: É...

Rocambole: É...

Telmo: Ô, tu viu o trailer do filme do Dragon Ball?

Rocambole: Puta, eu vi, mó bosta!

Telmo: Mó lixo, nem vou vê.

Rocambole: Nem eu.

Telmo: É...

Rocambole: É...

Telmo: Pode crê.

Rocambole: É... ô, tu viu que a Bandeirantes vai passá todos os episódio do Cavaleiros do Zodíaco?

Telmo: Nãaaaao?

Rocambole: De segunda a sexta às 13:00 hs.

Telmo: Caralho, vo dá o cano no trampo.

Rocambole: É foda que é na hora do almoço.

Telmo: Caralho, come enquanto assisti à televisão.

Rocambole: É foda, ou eu como ou assisto à parada. Eu não consigo me concentrar nas duas coisas.

Telmo: Entendi.

Rocambole: É...

Telmo: É...

Rocambole: Caralho, eu te contei que eu comprei uns bonequinho do Matrix?

Telmo: É memo? Iraaado!

Rocambole: Ô, o bagulho é igualzinho.

Telmo: To pensando em comprá uns G.I.Joe.

Rocambole: Porra, dá hora. Se liga, tu não tinha uma pá?

Telmo: Então, quando eu cresci, minha mãe doou pra creche.

Rocambole: Nooossa, mó mancada...

Telmo: É, então, mas eu nem brincava mais com us bagulho, se eu soubesse que ia gostá dessas parada depois de velho, eu teria guardado.

Rocambole: É real.

Telmo: É...

Rocambole: É...

Telmo: Se liga, Rocambole, eu to fazendo um trampo aqui no computador e vo te que desligá...

Rocambole: Ah, beleza, muleke.

Telmo: Depois a gente se tromba por aí.

Rocambole: Beleza. Falow, muleke.

Telmo: Falow.


18:15

Telmo: Alô?

Rocambole: Telmo?

Telmo: Sou eu.

Rocambole: Sou eu de novo, caralho, o Rocambole.

Telmo: Fala, bicho.

Rocambole: Porra, eu liguei pra tu e acabei não falando o que queria.

Telmo: Tu é foda.

Rocambole: Ô, vamo pra balada?

Telmo: Puta, muleke, eu nem to a fim de i pra Lucky Scope.

Rocambole: Nem é a Lucky Scope, porra, vamo pra Breezy, vinte de consuma e camarote.

Telmo: Então... se pá, eu vou. Eu tenho que esperá o meu pai chegá em casa pra jantá. Depois eu vo levá a minha irmã lá numa festa na Enseada. Aí eu tenho que fazê uma parada no computador pra marcá um esquema pro meu avô. Depois eu vo comprá um queijo pro meu pai, aí eu vo... tá ligado a Jose?

Rocambole: Aquela mulhé que parece o Gene Simmons?

Telmo: Ela memo, então, eu vo te que deixá uns três saco de cimento lá na casa dela pra depois pegá a cachorra e...

Rocambole: Tu não vai, né?

Telmo: Então, acho que vai se meio difícil. Se pá...

Rocambole: Falow, Muleke.

Telmo: Falow.


18:21

Rick: Alô, poooorra!?

Rocambole: Por favor, o Rick está?

Rick: Quem é que tá falando, méeerrrda?

Rocambole: Então, desculpa incomodá aí, mas é o Rocambole.

Rick: Faaaaaaaaala, gordinho.

Rocambole: É tu, Rick?

Rick: Lógico, poooorrrra, qualé daassss parada?

Rocambole: Eita, tu é estressadão no telefone.

Rick: Tá loco, lesssske, é a minha vibe usual.

Rocambole: Pode crê... o que é isso?

Rick: O quê?

Rocambole: Essa parada de usual.

Rick: Normal.

Rocambole: O que que é normal?

Rick: Usual significa normal, comum.

Rocambole: Saquei.

Rick: Tipo: “Rick foi à balada e pontuou”.

Rocambole: E?

Rick: É usual eu i pra balada e pontuá.

Rocambole: Vai se fudê, pega ninguém.

Rick: Tá me tirando, Rocambole? Eu pego geral.

Rocambole: Eu nunca vi.

Rick: Não viu porque não quis. Eu sempre faço as minha correria.

Rocambole: Sei. Ô, se liga, vamo pra balada?

Rick: Vamo?

Rocambole: Vamo.

Rick: Vamo?

Rocambole: Vamo.

Rick: Vamo?

Rocambole: Eu to falando que vamo, caralho!

Rick: Demorô. Onde vai se?

Rocambole: Na Breezy, em Santos, vinte de consuma e camarote.

Rick: Fechou. Viiiiixi, u menino vai se obrigado a reiná na sua segunda casa.

Rocambole: Só quero vê.

Rick: Tu qué apostá quanto que eu vo pontuá?

Rocambole: Num quero apostá nada. Mas se tu pegá, tu vai te que me avisá pra eu vê com os meus próprios olhos.

Rick: Eu não vou avisá nada. Quem vai?

Rocambole: Eu, tu e o Leonardo.

Rick: Pede pro Leonardo te avisá. Aquela porra não vai pegá ninguém memo.

Rocambole: Combinado.

Rick: Então, que horas tu vai passá aqui?

Rocambole: Eu marquei na casa do Leonardo às 21:30.

Rick: Beleza, 22:45.

Rocambole: Então até mais.

Rick: Até.

E Rick de fato estava certo. Ele pontuou. E todo mundo que estava lá, infelizmente, viu. Eu mais do que todo mundo. No entanto, a questão que fica é a seguinte: Gol contra vale?

22:15

Foi assim que começou a noite. Rocambole chegou às 22:15. Ele arranjou um modo muito positivo de chegar só 45 minutos atrasado. Um recorde para um cidadão que já atrasado diz que já tá na esquina: na esquina de uma rua movimentada da Letônia. Foi assim que Rick fez questão de não aparecer na minha casa para nos obrigar a chamá-lo na casa dele. Foi assim que vimos Rick atravessar a porta de... regata. Era final de junho e tava um puta frio. Tava chuviscando. E o sujeito materializa-se de regata. Às vezes, bem às vezes, quase nunca, eu gostaria de ser o Rick. Por um minuto, no máximo. Com possibilidade de arrependimento repentino e retorno imediato. Rick é aquele tipo de cara que anda com um bolo de cartão de visitas no bolso: Rick, engenheiro, número do telefone e e-mail. E os entrega como se neles estivesse impresso: Caça-Talentos. Ou fotógrafo de moda. Ou produtor de T.V. Ou cineasta. Ou cafetão. Rick se dispõe a colar nas minas mais gatas da balada. E nas mais altas. E as faz rir. Não sei se elas riem pela qualidade humorística da anedota que ele lhes confidenciou ou pela petulância de se dirigir a elas. Rick possui uma qualidade que a maioria das pessoas não tem a coragem de assumir: ele exclui o fator ele. “Não sou eu que estou a caminho de colar na mina mais gostosa da festa.” “Não sou eu que estou me olhando no espelho.” “Não sou eu que estou usando esta ridícula regata preta e esta ridícula regata preta não me faz parecer uma versão em miniatura do Al Pacino no filme Parceiros da Noite.” “Não sou eu que estou prestes a pegar esta distinta senhora que está usando uma encharpe e um gorrinho de lã tricotados por ela mesma.” Eu gostaria de abraçar essa possibilidade toda vez que tenho que me manifestar em público. Seja falando ou não falando por vergonha de continuar falando. “Hoje eu sou o Martin Luther King.” Entretanto, uma das coisas que mais prezo na minha personalidade, e que me deixa possesso quando ela permite que alguma crítica feita por outra pessoa à minha pessoa me seja desconhecida, é o autoconhecimento. E, por conseguinte, a autocrítica. A autocrítica só é acionada quando o autoconhecimento não é pleno. Ele nunca será pleno. A plenitude faria de mim um iluminado. E a humanidade está coalhada de vícios por meio dos quais não descarto me emaranhar algum dia. Em suma, aderir ao autodesconhecimento deliberado ao qual recorre Rick nos embates cotidianos seria uma contradição à crença com a qual me sinto muitas vezes insuportavelmente comprometido. “Hoje serei Brad Pitt. Amanhã, Mick Jagger. No fim de semana, Jude Law. Na próxima terça-feira, um francês. No feriado do dia das crianças, um sueco de cabelo preto dono de uma pousada de luxo em Trancoso.”

Eu nunca quis ser o Rocambole porque eu ia demorar muito para chegar a qualquer encontro. E também não ia conseguir correr atrás do busão. Na verdade, eu não ia conseguir sequer correr. Até o telefone. Eu ia ter que gastar muito dinheiro com brinquedinhos. Bonequinhos dos heróis da Marvel Comics, jogos do Playstation 3, jogos do Wii, jogos do XBox, celulares de última geração, tablets de várias cores etc. Eu ia gastar muito dinheiro com alimentação. Desde saladas combinadas de modo excêntrico a sorvetes da marca Branca de Neve. Desde sashimi de salmão cortado sobre um balcão de mármore por um japonês com luvas cirúrgicas a pão francês preparado pela excrescência manual do padeiro e criador de cavalos Puruca. Eu ia gastar muito dinheiro com máquinas de barbear e cremes de barbear. Eu ia desperdiçar muitos minutos aparando os pelos faciais que assam desafortunadas faces femininas e aquele ninho de pombo chamuscado que cresce no meio das nádegas. Eu não teria o prazer de sentir os meus cabelos tremulando ao vento. Mas poderia apoiar o copo de cerveja na barriga. E conseguiria fazer sites. E poderia me ver fotografado de gênio carregando uma criança nos ombros. Mas teria a coragem de pegar uma pin up gordinha que não vou dizer o nome. Aliás, é um crime uma pin up ser gordinha. Eu teria um fígado de boi tatuado na batata da perna. E teria um banco azul reservado para mim no metrô. E iria acusar o Leonardo de hipster. E me matricularia no kickboxe. E faria todo mundo rir com esta informação.

Até hoje não tenho provas contundentes quanto à vexatória possibilidade de alguém querer me ser. (Bela frase!) A não ser, talvez, Renatinho, o japonês amorenado que satisfazia as suas vontades utilizando as minhas. As minhas camisetas. Os mesmos moletons. Os mesmos bonés. As mesmas opiniões sobre tudo. Inclusive, as mesmas minas. Até o dia que ele realmente se apaixonou por uma mina e destruiu a sua amizade baseada em mim: “Sabe o Leonardo? Então, ele falou que não gosta de você.” “Leonardo, se você tiver alguma coisa pra falar na minha cara, fale na minha cara!” “Deixa eu anotar: se eu tiver alguma coisa para falar na sua cara, falo na sua cara.” Dois anos depois, eu só não falei coisas na cara dela, muitas coisas, como também gozei na cara dela, muitas vezes. No entanto, adianto antes que seja tarde demais (pretensão?) que grande parte da minha existência é composta por situações das quais não me orgulho nem um pouco. Messssmo! Mas com as quais aprendi muitas lições que me serão úteis para o resto dos meus dias. Por exemplo: Nunca subestime a vontade de uma mijada, ela pode se voltar contra você. Nunca fique deitado por duas semanas na cama quando a ordem médica era só de, no máximo, uma semana. Não esqueça que as fezes que estão no seu corpo podem endurecer se você deixar de se movimentar por um longo período. Sempre desconfie quando uma mina mandar uma foto dela pra você a 1km de distância da lente da câmera. Jamais dirija bêbado enquanto fuma skunk com os seus amigos. Sobretudo quando um ônibus cheio de policiais militares está na sua cola. Não bote fé em prostitutas que pedem uma contribuição maior do que a usual com a desculpa que “é para realizar um strip artístico”. Não confie em puteiros que permitem que os clientes adentrem com máquinas fotográficas. Não deixe o Saulo escolher uma prostituta para um strip privativo. A última vez que ele escolheu, ela foi apelidada de Dengue. Jamais brigue com o Mad. Ele não dará um soco na sua cara, mas poderá enfiar o dedo do meio no seu cu! Não se apaixone por filhas únicas. Depois de beber cinco doses de tequila, não beba uma lata de cerveja. Não cague no colégio na hora do recreio. Caso cague, verifique as unhas após sair do banheiro. Não matricule o seu filho em um colégio que guarda os rolos de papel higiênico na cozinha da cantina. Não chegue completamente bêbado em casa, peça uma pizza e se dê ao luxo de tirar uma cochilada. A pizzaria não fica em Marte para você acordar a tempo. Nunca subestime um anão. Ele pode ter um pau maior do que o seu. Não vá ao show do Nenhum de Nós com o seu pai. Em hipótese alguma vá ao show do Nenhum de Nós com quem quer que seja. Se você estiver sentado em um busão lotado e observar uma mulher barriguda em pé, não ceda o seu lugar a ela: ela pode não estar grávida. Se você for a uma festa à fantasia com a sua namorada e ela for fantasiada de coelhinha, você é um corno em potencial. Você está na parte descoberta de uma balada, faz calor, o céu está estrelado, no entanto, apesar de tudo, você começa a sentir algumas gotas de alguma coisa respingando na sua cabeça. Conforme-se: alguém está vomitando na sua cabeça. Não dê carona para alguém que você não conheça. Aliás, não dê carona a mendigos. Aliás, não dê carona a mendigos que têm bicicletas. Não proteste contra o aumento das mensalidades da faculdade com os membros do diretório acadêmico filiados à UNE. Justamente pela inadimplência deles é que a faculdade vai aumentar.

Contudo, no intuito de ser mais persuasivo, e para lhe proporcionar alegria ao deixá-lo sorver a iguaria saborosa do sofrimento alheio, irei relatar em minúcias duas dessas malfadadas porém transformadoras experiências. A primeira delas não é nada perto da segunda. Entenda, a primeira delas também é horrível. É que a segunda é tão escrota que faz da primeira quase um peido que a Sofia Vergara daria. Sinceramente, não sei se terei coragem de relatar a segunda. Ainda há tempo para pensar. A última pessoa para quem contei foi para o ex-namorado de uma amiga da minha mina. Ele é produtor de T.V de um programa famoso, portanto, antes de contar, pensei: “ele já dever ter visto e ouvido de tudo no mundo babilônico das celebridades. Não vai pegar nada”. Ledo engano. Logo após que eu terminei de dividir essa minha triste experiência com ele, ele me disse o seguinte: “Nunca mais irei olhá-lo da mesma forma”. E é assim mesmo que me sinto depois de sair vivo desse nauseabundo episódio: uma outra pessoa. Alguém que por alguns tortuosos minutos habitou no caos. Fez um parto de si mesmo. Tocou na sua pior parte. E saiu com vida.

Entretanto, antes de começar, devo deixar claro que não tenho colhões de me assumir como protagonista dessas peripécias. Ver o “eu” no meio desse vórtice pós-feira não me deixará orgulhoso. Ou seja, terei que usufruir do autodesconhecimento concebido pelo Rick para espalhar toda a minha podridão diante dos seus olhos.

Eu não sou o cara que depois de sair muito bêbado de um bar próximo à faculdade resolveu passar no drive-thru do Mc Donald’s porque estava com muita fome. Eu não pedi um número 2 especial (pão, carne e queijo, sem molho), com batata-frita grande e coca-cola média, e fui comer dentro do carro. Eu não sou o rapaz que comeu tudo, secou o copo do refrigerante e saiu do carro para jogar todo o lixo fora. Eu ainda me pergunto porque esse cara deixou de jogar fora o saco de papelão do Mc Donald’s. Eu não sou o cara que saiu do Mc Donald’s direto à balsa. Não havia fila na balsa, afinal, eram quase quatro horas da manhã, portanto o cara que não sou eu ficou muito feliz ao ver a balsa o esperando. A balsa não estava cheia. Todo mundo sabe, inclusive eu, que, quando a balsa não está cheia de madrugada, eles esperam, às vezes durante um longo tempo, que ela fique cheia. Enquanto isso, o cara que não sou eu, que ainda estava um pouco bêbado porém saciado da fome, começou a ficar com vontade de mijar. Dez minutos se passaram, a balsa ainda parada, e a vontade de mijar aumentando. Quinze minutos se passaram, a balsa parada, e a vontade de mijar cada vez mais urgente. Vinte minutos se passaram, a balsa parada, e a vontade de mijar ficou insuportável. O motor foi ligado. Uma luz de esperança iluminou o rosto do cara que não sou eu. A balsa começou a se locomover. O cara que não sou eu achou que poderia segurar a mijada até chegar em casa. Um segundo depois, ele percebeu que não conseguiria chegar em casa para dar a mijada. A bexiga começou a doer. A bexiga meio que começou a criar vida própria. Ele pensou em sair do carro e dar uma mijada no mar. Ele percebeu que não estava tão bêbado para fazer isso. Ele pensou naquele dia em que ele pediu ao motorista do Expresso Brasileiro, que estava vazio de gente e lotado de cheiro de coxinha de frango estragada, para parar no acostamento da serra porque ele estava ensandecido para dar uma mijada. Ele não estava bêbado naquele dia. Portanto, ele saiu do carro. No entanto, ele voltou ao carro porque tinha uma pá de mina gata fora dos respectivos carros ouvindo psy e eu não sei por que ele achou que mijar ao lado dessas minas seria mais desagradável em comparação ao que ele estava prestes a fazer logo a seguir. A balsa parecia que não andava. Ela não andava. Claro, um navio chinês tinha que passar logo nesse momento. “O que eu faço?”, ele se perguntou. “Deus, o que eu faço?”, típico dele lembrar-se da existência do Divino nesses momentos. “O que eu faço, seu filho da puta?!”, típico dele ofender o Senhor após não ouvir nenhuma resposta, caso ouvisse, tenho certeza que ele se cagaria todo. Ele comprimiu o corpo no assento do motorista. Ele roçou o dedo indicador na bexiga e quase chorou de desgosto com a lancinante sensibilidade. Ele mataria alguém por um alívio imediato. A balsa continuava parada. O navio chinês continuava interminavelmente se arrastando. As minas dançavam psy e soltavam perdigotos com vodca. Ele começou a suar frio. Estava um puta calor. Ele resolveu fechar os vidros do carro. Ele ficou ereto no banco do motorista e olhou para os seus olhos no espelho retrovisor e viu pelos seus olhos que ele estavam dispostos a cometer uma loucura inconfessável. Mijar nas próprias calças seria desmoralizador. Ele não estava preso no deserto. Ele estava no meio da sociedade. Ele estava vivendo o sonho. Ele tinha um carro do pai dele, tinha dinheiro do pai dele, tinha um Nike comprado com o dinheiro do pai dele. Ele amava o pai. O pai era Deus. E ele não era barbudo. E às vezes peidava na sala enquanto estava assistindo algum filme de guerra antigo no TCM. E não usava papel higiênico porque ele viu um documentário na Discovery que dizia que os hindus... Ele precisava de alguma coisa. O tempo parou. Ele necessitava de algum objeto para poder mijar dentro dele. “Puta que pariu!” A balsa voltou a andar. Para trás. O navio chinês estava andando meio torto. Foi a primeira das duas vezes em sua curta e praticamente casta existência que ele considerou o breu sem fim da morte como um alívio. Foi a primeira das duas vezes em sua curta e quase casta existência que ele considerou o breu sem fim da morte mais aprazível do que o breu sem fim da desonra social no qual ele estava à beira de se jogar em desespero. Ele encontrou o saco de papelão do Mc Donald’s no banco de trás do carro. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “O que a porra desse saco tá fazendo aqui?”. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “Por que eu não joguei o saco fora ao invés do copo?”. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “O natural não é terminar o lanche primeiro e finalizar o refrigerante depois?”. Ele se perguntou a mesma pergunta que me perguntei quando soube dessa história: “O natural não é jogar tudo dentro do saco de papelão e jogar o saco de papelão com tudo dentro dentro do lixo?”. Não tinha jeito. Teria que ser dentro do saco. O saco que não estava dentro do lixo. O saco que não estava dentro das calças. Mas dentro do carro (que logo mais ficará com cheiro de lixo). A balsa recomeçou a se locomover. Agora para a frente. Mas ainda faltavam quatro minutos para o término da travessia. Era tarde demais. Ele disse baixinho, para si mesmo, e para o saco, o seu saco, e para o outro saco, o saco do Mc Donalds, e para o seu pinto: “É nóis”. Ele abriu o saco. Certificou-se que dessa vez não era para vomitar. Ele botou o saco aberto no colo. Abriu a braguilha da calça jeans. Na verdade, ele arriou toda a calça até os tornozelos. Quando estava completamente bêbado, ele às vezes arriava toda a calça ao mijar no mictório da balada. Ele sofreria muito na cadeia se adotasse esse ébrio costume. Ele olhou para a frente. Olhou para trás. Olhou para ambos os lados. Olhou para o céu. E pediu. Pediu. Pediu... mais sorte da próxima vez. Pediu. Pediu... que não houvesse uma próxima vez. Ele tirou o saco de papelão do colo. Ele ficou duelando consigo para achar uma posição ou lugar onde ele pudesse posicionar o saco e alvejá-lo com sucesso. “Se eu segurar o saco com uma mão, e segurar o meu pinto com a outra, o saco pode rasgar com a quantidade excessiva de urina.” “Se eu colocar o saco no colo, e tentar mijar para o alto, para o mijo cair no saco, não no meu saco, mas no de papelão, como um chafariz, há a possibilidade de o mijo afagar o meu rosto.” “Se eu colocar o saco no chão, entre os meus pés, o prepúcio pode bloquear parcialmente a uretra e o que era para ser um fio único de urina pode virar um fio duplo de urina que provavelmente sujará muitas partes do meu carro e do meu corpo...” Mas não havia tempo para pensar nisso. E ele não estava pensando nisso. Já era. Ele já havia tirado a sua samba canção remendada do Chico Bento pescando uma cueca remendada dentro de um rio remendado. Ele já tava mijando. Dentro do saco. Ele já tinha soltado o batido “Ahhhhhhhh...” logo após começar a mijar. Ele colocou o saco em pé sobre a palma da mão esquerda e segurou aquela porra que parecia uma azeitona cor de pele sonolenta com a mão direita enquanto um jorro de mijo esverdeado desaguava justamente onde ele havia planejado. O saco começou a ficar quente. Os dois sacos. Ele sentiu a temperatura do próprio xixi na palma da própria mão cuja palma já enrolara muitos brigadeiros em tardes invernais. Ele começou a sentir o próprio mijo na própria mão cuja palma segurava o saco que havia acabado de estourar. “Caralho...” Ele levantou o saco para ver o que estava acontecendo enquanto o pinto mijava pra baixo e a urina empoçava o banco do motorista. Ao levantar o saco, os resquícios de urina que ainda resistiam bravamente dentro do saco de papelão caíram no seu colo, respingaram sobre o seu peito, escorreram pelas canelas, encharcaram as suas meias, enquanto o pinto, agora descontrolado e nunca antes tão vivo e indomável, lavava o volante. Era uma puta mancada com o pai dele sujar dessa forma o volante que o pai guiava todos os dias úteis para ir ao trabalho para coletar o dinheiro para o filho comprar um monte de cerveja que inchava a bexiga a ponto de explodi-la sobre o volante que dava ao pai a direção nos dias úteis para ir ao trabalho para coletar dinheiro para o filho comprar cerveja... Então ele jogou o pau para a mão esquerda molhando sem querer o joelho esquerdo e, com a mão direita, abriu o porta-luvas e redirecionou o pau para aquela direção. Puta que pariu, mó mancada, os óculos da mãe dele estavam lá. Puta que pariu, mó mancada, o livro do I Ching quase totalmente grifado da mãe dele também estava lá. Puta que pariu, mó mancada, o documento do seguro também estava lá. Puta que pariu, mó mancada, a coletânea definitiva da Dalva de Oliveira que o pai passou anos montando como um arqueólogo em busca de sensações da infância no bairro da Pompéia também estava lá. Adeus, óculos. Adeus, livro do I Ching. Adeus, documento do seguro. Adeus, coletânea definitiva da Dalva de Oliveira. Afoguem-se! Então ele largou o pau. O pau agiu a essa tão almejada liberdade como uma mangueira de bombeiros tresloucada portanto solta após a explosão de dez andares consecutivos de um prédio de cinqüenta e três andares consumido pelo fogo com todos os moradores dentro. Tá bom, exagerei. O pau agiu a essa tão almejada liberdade como uma micro-arminha de brinquedo tresloucada e cheia de água poluída portanto emperrada após o desmoronamento de cinco andares consecutivos de um prédio de sete andares consumido pela inépcia de uma criança retardada de 11 anos que não entrou em um acordo inteligente com as peças coloridas do Lego fudendo assim com a vida de duas famílias prósperas de piratas de Playmobil. Era como um Boneco de Posto de gasolina em miniatura em meio a uma tempestade tropical que por acaso detém a estranha habilidade de jorrar líquido colorido pelo topo da cabeça. Se alguém disser que já viu uma carnificina de mijo, ou uma orgia de mijo, ou a dança das águas urinadas, ou, em vez da Esquadrilha da Fumaça, a Esquadrilha da Mijada, essa pessoa testemunhou na entoca o que estava acontecendo no interior daquele carro que apodrecia vertiginosamente. Mijo no parabrisa. Mijo no painel. Mijo no rádio (que a título de lembrança tocava Marcos Valle e o seu nefasto hit oitentista Estrelar: “Tem que correr, tem que suar, tem que malhar, vamos lá, musculação, respiração, ar no pulmão...”). “Caralho, no olho nãaaaaaao!” O infeliz cara que não sou eu colocou os dedos mijados entre os cabelos mijados e gritou “Essa porra não vai acabar nunca?!”. A balsa começou a se preparar para atracar. “Não, merda, dentro do nariz não.” O cara que não sou eu começou a chorar em desespero. As lágrimas uniram-se às urinas e criaram um pequeno córrego no lado esquerdo do banco do motorista batizado de Novo Tietê. No rádio começou a tocar Guilherme Arantes e sua perdição ‘Planeta Água’. O condutor da balsa finalmente conseguiu atracar a balsa. As minas gostosas do Psy amontoaram-se dentro dos seus veículos. O processo da descida da rampa para a subida dos carros foi concluído. Subitamente, o vazamento urinal foi cessando. Um pingo no tênis. Um jorro no cinto de segurança. Um traço no dorso da mão. O cara que não sou eu olhou para o retrovisor molhado e viu todo o rosto molhado. Ele não conseguia discernir o que eram lágrimas e o que era urina. Os carros começaram a sair. Ele virou a chave molhada, ligou o carro internamente molhado e abriu os vidros molhados. As minas gostosas do Psy emparelharam os seus veículos 4X4 ao lado do seu carro... humildo: uma fusão de humilde com úmido. Elas disseram: “Ihhhh, meu, o cara tá chorando”. “Não chora não, cara, você tá no Guarujá, você tá no pico.” “Levanta a cabeça, meu, relaxa, bem-vindo ao Guarujá.” “É, meu, bem-vindo ao Guarujá.” Ele disse: “Valeu”.

(Continua na próxima segunda-feira.)