segunda-feira, 30 de maio de 2011

Toda religião é uma forma de preconceito



"Se o Ronaldo pegou, então deve ser irado!"

Comentário do meu amigo Daniel, corintiano, a respeito da suposta aventura sexual de Ronaldo Fenômeno com travestis

Outra mentirinha que o povo culturalmente confortável com a cultura brasileira criou para enganar a si mesmo, auxiliado por específicos meios de comunicação, órgãos do governo e pela intrépida burrice que lhe é característica principal, é a de que todo tipo de preconceito foi erradicado da nossa evoluída sociedade. O dia em que isso acontecer, e não me refiro somente ao nosso arrombado país, mas ao mundo todo, será o dia em que um E.T anunciar, em árabe, a nossa extinção. O preconceito é inerente ao ser humano. Se não houvesse preconceito, não haveria humor. O preconceito é a matéria-prima do humor. Se há pessoas desprovidas de preconceito, eu não as conheço. As pessoas desprovidas de preconceito que conheço são as hipócritas. Vi uma reportagem na televisão que o número de cirurgias de redução no estômago em crianças alcançou níveis nunca vistos no país. O crescimento dessas intervenções ocorreu por conta do termo mais babaca para designar algo provocado por babacas mais babacas que o termo: o Bullying. Eu sofri essa porra quando era criança. E, por incrível que pareça, aprendi muitas coisas que tornaram a existência cotidiana menos torturante. A principal delas foi a de que as pessoas não mudam. Pode-se dissimular o mal se a pessoa for uma filha da puta. Pode-se dissimular a inveja se a pessoa for invejosa. Pode-se dissimular a falta de senso de humor se a pessoa for comunista: a essência perdura e desnuda-se quando a casa cai. O Bullying é a forma mais brutal de preconceito e a mais vil. Já que o preconceito é inerente a nosotros, devemos usá-lo com inteligência. A vida é feita de escolhas, cada escolha é um preconceito. Preferir alguém a outrem denota preconceito. Torcer por um time: preconceito. Organizar um set list no Ipod: preconceito. A existência nada mais é que uma variedade de preconceitos com múltiplos significados. O preconceito que revolve, com violência, opções sexuais e raça é o preconceito da torpeza.
Aprendi muitas coisas que tornaram a existência cotidiana menos torturante. A principal delas foi a de que as pessoas não mudam. Se a pessoa for boa, ela usará o preconceito de modo inteligente. Se for má, ela usará o preconceito para promover guerras. Se for burra, ela achará que está livre de preconceitos.

Então eu era magro e dentuço e às vezes aquele mundo tinha gosto de sangue.
E as meninas ainda não tinham peitos e eu não tinha peito para chegar às meninas.
E, embora com o passar do tempo os peitos de todas as meninas foram crescendo, o meu peito para chegar às meninas ficou do tamanho dos seios de uma ginasta.
Portanto agora eu poderia atribuir essa falta de coragem ao soco na cara que recebi de alguns filhos da puta da quarta a sexta série.
E também poderia abusar desse artifício cômodo para justificar as duas repetências dessa fase incômoda.
Poderia me isolar em minha saga de saco de pancadas cheio de porra amotinada no meu saco. Poderia me alimentar de ódio e vomitar uma enxurrada de sangue tsunâmico e pedaços de dentes negligenciados enquanto tentava proferir a palavra amor em bolhas coloridas.
Poderia deixar de usar desodorante e cuspir no próprio rosto para chocar a patota que chocava a minha cabeça contra a parede.
Era assim que poderia ter sido o futuro.
Era assim que poderia começar a desmembrar animais de estimação.
Filhotes, de preferência.
Crianças, de preferência.
Derramar sangue alheio para recuperar o sangue perdido.
Transfusão histórica.
Derramar o sangue alheio para recuperar as noites de sono que perdi.
Era assim que poderia perder tempo remoendo o tempo perdido.
Mas não.
Havia outro mundo para conhecer.
Ainda bem que só pessoas boas faziam parte dele.
Ainda bem que só pessoas boas fazem parte do presente que me dei.

Todo homem é um preconceito em si mesmo

Eu me dou bem com os gays. Na real, eu sempre me dei bem com os gays. Não, eu nunca dei para gays nem para qualquer cidadão que possua pênis. Sou preconceituoso o bastante para impossibilitar que qualquer coisa toque o meu cu. Mas não tenho nada contra, inclusive até conheço, gente que deixa a namorada lamber o próprio cu. A liberdade autônoma pode ser mais subjetiva do que pregam. Ela fez com que um amigo fosse duas vezes a uma balada gay só para ver como é que era. O nome da balada: Santa Mix. O nome do amigo: deixa pra lá. Desde criança vivo num mundo habitado relativamente por gays. Quem vive atualmente na cidade de São Paulo, também. Dos quatro anos até os 13, eu quis ser jogador de futebol. Mas, como sempre, desencanei. E novamente desencanei quando, dos 14 aos 23, quis ser um rockstar. Depois quis ganhar dinheiro escrevendo as coisas que gosto: isso. Ainda continuo a escrever as coisas que gosto, mas o dinheiro não gosta das coisas que escrevo. E eu não gostaria de ganhar dinheiro escrevendo coisas que não gosto. Como nunca namorei garotas que não gosto. Contudo, estar em um lugar que desgoste nem sempre é uma questão de escolha. A liberdade pode, às vezes, desiludir. O problema, porém, é que não há escolha para quem não tem dinheiro. Ou melhor, tem, e ela envolve comer merda e foder uma gorda fedida que fala sozinha em cima de um monte lixo. Então tive que me contentar em obter dinheiro trabalhando no negócio da família. Em certos casos, a única escolha que se tem é escolher a falta de escolha: jogar o dardo na direção do alvo, errar o alvo e rezar para que ele não retroceda e perfure a nossa testa. O meu pai deve ter pensado desse modo ao me apresentar, durante o período da infância, o tão propalado e temido período da formação, somente o lado macho da vida. Certamente deve ter sido difícil para um homem de 34 anos, que acabara literalmente de pendurar as chuteiras, aceitar a idéia de passar o resto de sua vida administrando uma escola de ballet. É isso que ele, junto com a minha mãe, faz há 28 anos. 28 anos de sapatilhas, músicas ao piano e homens depilados de voz fina. É isso que ele, junto com a minha mãe e, nos últimos dois anos, junto com o filho, faz há 28 anos. A relação do homem com a prática do ballet é baseada na coragem e na desconfiança alheia de uma suposta homossexualidade. Quantas vezes você já ouviu: “Não é porque ele faz ballet que ele é gay”. Por experiência própria, de 20 bailarinos que conheci, o dedo mindinho do pé de um deles não era gay: estava com o esmalte gasto, um horror! Ser gay, pelo menos para alguns, não significa ser gay o tempo todo. Ninguém suporta por muito tempo ficar ouvindo o Marinho discorrer sobre toca-discos, vinis e dj’s. As mulheres, certamente, não! O homem só agüenta a mulher cujo monólogo está restrito a glamour, fofocas e roupas quando sabe que o seu laborioso papel de ouvinte propiciará que ele a leve para o banco de trás do carro e a coma de quatro enquanto a bochecha dela fica engraçada ao ser esfregada no vidro. Agora, como pedir para um heterossexual que agüente o papo com um homem cujo repertório vocabular se restringe a picas grossas, peitos peludos, Lady Gaga, picas grossas, rabos peludos, Scissor Sisters, picas grossas e a bunda depilada do príncipe William? E como pedir para um homossexual que tolere o papo com um homem cujo repertório vocabular limita-se a homens de coxas grossas que correm atrás de uma bola, esquemas táticos incompreensíveis que envolvem esses mesmos homens de coxas grossas correndo atrás da mesma bola, homens musculosos banhados em sangue engalfinhados em uma gaiola estendida, donas de bucetas sacanas, donas de bucetas recatadas e pena de morte? Ser gay não significa não ser homem, significa ser um homem com predileções distintas da maioria dos homens. Entretanto, por mais discrepantes que sejam essas predileções, sempre há coisas em comum. (Não, não estou me referindo a uma análise do dilema Richarlyson.) Por exemplo, Scissor Sisters. Eu curto Scissor Sisters. E daí? Qual é a diferença entre Scissor Sisters e Bee Gees? Tudo bem, o vocalista do Scissor Sisters rebola pra caralho, mas fora esse sacolejante detalhe, qual é o problema? Exaurido o assunto Scissor Sisters, que tal abordar Erasure? Assumo, também gosto de Erasure, considero A Little Respect uma grande canção pop - e não posso ser contrário à análise de que a maior parte dos homens que assumiram que curtem Erasure mais cedo ou mais tarde assumiram-se boiolas. Mas sou exceção. Sempre há uma exceção em homens que familiarizam-se com aspectos da cultura gay. Alguém deixou de ler e respeitar Gore Vidal por conta disso? Embora não há um ser no meu círculo de amizades que leu ou lerá Gore Vidal. (Talvez se interesse no futuro, vai saber, por algo escrito por Al Gore.) Há homens heterossexuais que vislumbram bravura no ato da sodomia masculina. “Porra, um cara que agüenta um pau de negão de 30 centímetros e, ainda por cima, ou por baixo, sente prazer no ato, tem que ser muito macho!” Sério? Acredito que o homem cujo bumbum agüenta um pau de negão de 35 centímetros, e ainda sente prazer no ato, tem que ser muito gay. Ser gay nada mais é que agüentar um pau de 49 cm e ainda sentir prazer no ato. O gay só é gay porque gosta de currar e ser currado por homens. Ninguém é gay só pelo fato de gostar de Patrícia Marx. Ok, me rendo, antes de fazer a pergunta a si mesmo, admito, gosto de Patrícia Marx, Quando Chove é uma música que toca profundamente o meu coração, não só o meu coração mas o coração e o cóccix de dez décimos da Parada Gay. Tanto Patrícia Marx quanto Bryan Adams – é, ele também -, Wilson Phillips (não conhece? Corra atrás. Sonzeira bem... de boa), Boyz II Men (Wesley Snipes ouve Boyz II Men quando está com o coração partido, tá!), The The (resumo: o Deus da música), Banda Beijo (peguei pesado, né? Eu sei, mas Baianidade Nagô é uma música que inexplicavelmente me faz cantar, eu sei a letra toda, cara, é uma vergonha, esse momento é um divisor de águas na minha biografia, nunca contei a ninguém, vocês são as primeiras pessoas a que conto, vocês... três leitores que leem esta porra!), Dionne Warwick (meu brother, se você não derrama nem uma mísera lágrima toda vez que ouve That’s What Friends Are For, você tem um cacto moribundo no lugar do coração), 4 Non Blondes (todo mundo se achava “cool” ou “cuuullll” ao cantar What’s Up!) e... Zélia Duncan (não vomite, senão vou vomitar, depois desta última “surpresinha”, mereço vomitar na minha própria cara!) me impelem a lembrar de uma época que o significado da palavra “relaxar” era tomar banho de banheira sozinho (só para constar, não pegava ninguém), ouvir rádio FM (entendeu?) e criar um estratagema para extravasar o amor que sentia por Renata Yumi (ainda não tinha “me” inventado a punheta). Na boa, eu tinha 11 anos e não tinha controle nem sobre o meu corte de cabelo, como vocês dois podem exigir uma “maior” qualidade no meu gosto musical pré-adolescente? “Fale por você, carinha, eu, quando tinha 9 anos, veja só, 9 anos, já escutava John Cage.” Ouvia o quê, 4’33”? Não fode, caralho, com 9 anos to ligado que tu escutava Copacabana Beat trancado no quarto e possuía a latinha das 7 Melhores da Pan. Tão vendo? Este é o problema do homem que está mais próximo da meia-idade e mais distante do saudoso período em que tinha meio-metro e nem meia-preocupação com a vida e nem meia-obrigação de correr atrás de meia-entrada para dormir no meio do filme: ele esconde o passado púbere como se fosse o Phil Anselmo antes do Pantera ser O Pantera.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Adiós, Buenos Aires, Hasta Luego!



“Ainda continuo a saber o que sabia enquanto estava aqui.”

Trecho tirado do sublime livro de epitáfios de Arno Palumbo – Só morro de Aids, editora Vintage Cranco.

Eu sempre sonhei em conhecer Buenos Aires.
Desde o dia em que Maradona deixou Dunga para trás e rolou a bola para Caniggia driblar Taffarel e eliminar o Brasil na Copa de 90, a nitidez mais remota de episódios tristes da minha memória remonta a este domingo ensolarado no qual toda a família se reuniu na casa do meu avô gigolô para, 100 minutos depois, comer em silêncio. Foi a última vez em que vi o meu pai sofrer com qualquer coisa relacionada a futebol. Foi a primeira de prováveis infinitas ocasiões em que vi o meu pai amaldiçoar o Brasil.
No mesmo ano, o meu pai morreu.
Mentira.
No mesmo ano, fiz amizade com um menino chamado Nicolas, que era o único brasileiro de uma família argentina. A irmã mais velha de Nicolas, Alice, foi a primeira mulher que reconheci como bonita (obrigado, pau duro, pela informação) que vi na minha vida e o primeiro indício do fascínio que as argentinas descendentes de ingleses provocariam em mim.
Catorze anos depois, o amigo mais gordo que conheci até agora, Rui, que fez parte da minha classe na faculdade, me apresentou a melhor banda de ska que já ouvi até então (que, por sinal, é natural de Buenos Aires): Satélite Kingston.
No mês de novembro do ano seguinte, o craque argentino Carlitos Tevez marcou três na inesquecível vitória de 7x1 do Corinthians pra cima do Santos. Foi a primeira e última vez que achei um homem bonito.
Eu tinha que conhecer Buenos Aires.
Dois anos depois, eu e o meu amigo “zen” Verinha fomos ao show do Satélite Kingston, em São Paulo, e ele, que nunca havia escutado, gritou, sóbrio e suado: “Esse é o meu tipo de carnaval!”. Todo mundo que conhece o Verinha sabe que ele não é nada carnavalesco.
Tudo o que não veremos durará para sempre. Os lugares para os quais jamais iremos serão para sempre o nosso pensamento.
Conhecer pode ser decepcionante.
Eu conheci Buenos Aires no começo deste ano - e o lugar me surpreendeu ainda mais que a surpresa que desejava que me surpreendesse.

Buenos Aires é maravilhosa.
Linda, viva, colorida, arborizada, charmosa e barata.
Entretanto, apesar de tudo, tenho uma reclamação a fazer.
O único fator realmente lamentável de Buenos Aires se deve ao excessivo número de turistas brasileiros. “Oh, e você é o quê?” Eu sou brasileiro, a maioria da minha família é brasileira, minha namorada é brasileira, o cachorro dela é brasileiro, os meus amigos são brasileiros, eu sempre vivi no Brasil, os melhores momentos da minha vida aconteceram aqui (os piores, sem dúvida alguma, também), mas não sou o tipo de brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira. Se alguém que estiver lendo esta merda for dessa cepa, na boa, você me envergonha. Eu sempre odiei o Gugu Liberato. Eu só não coloco o Gugu Liberato na minha lista de vadias que merecem apanhar porque sou incapaz de saber o que ele está produzindo agora. Mas a imagem mais vívida que tenho do programa dele, o extinto, graças a Jah, Viva a Noite (Viva!), além da lembrança da apresentação do Locomia e da matéria do Circo do Jaspion, é da reportagem (talvez a melhor coisa que ele tenha feito na vida) sobre o comportamento dos brasileiros na Disney World. Quando vejo algum “brasileiro com orgulho” furando a fila da balsa, automaticamente penso nesta reportagem. Pode ser gay, e sem dúvida denegridor, daqui para o resto da minha vida me sentir conectado a algo criado pelo Gugu e a sua equipe de baitolas, mas me sentiria muito mais pútrido em comparar a bela arquitetura de Buenos Aires com a do... Recife.

Vamos lá. A primeira regra do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira é achar que o Brasil é melhor em tudo. As nossas praias são as melhores, as nossas mulheres são as mais gostosas (ussxxss turisstassxxs têm que apaaanharrrr porque elesssxxs vêm aqui roubaarrr assxxs nossassxxxss mulheresssxxss), o nosso povo é o mais simpático, a nossa música é a mais rica, a nossa cerveja é a mais gelada, o nosso futebol é o mais fantástico, a nossa língua é a mais completa, a nossa democracia é a mais exemplar, as nossas festas são as mais divertidas, o nosso hino é o mais bonito, o nosso feijão é o mais saboroso, o nosso clima é o mais perfeito, os nossos brasileiros são melhores que os brasileiros dos outros, por fim, como o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira gosta de afirmar: “Nós somos os mais melhores em tudo!”.
Um dos lugares que mais gostei em Buenos Aires foi Puerto Madero – o bairro mais jovem da cidade portenha. Puerto Madero fica à parte do resto da cidade por ter um largo canal que dá acesso ao Estuário do Rio da Prata. Em torno do canal, que tem barcos que são abertos para visitação aos finais de semana, há dezenas de restaurantes luxuosos, bares descolados, residências bacanas e hotéis chiques que ficam situados em uma passarela que circunda todo o canal e que deve ter, no máximo, uns 3km de extensão, onde pude correr tranquilamente todas as manhãs, enquanto outras pessoas também corriam, ou faziam uma caminhada, ou andavam de patins (bicicletas e cachorros são proibidos de trafegar na área e todo mundo respeita) sob o constante céu azul, sem uma mísera nuvem, com o sol permanente e poderoso fielmente acompanhado por uma brisa deliciosa que tornava o verão argentino algo perto da perfeição. À noite, quando as luzes dos postes, dos prédios, dos restaurantes e dos barcos acendiam-se, e os restaurantes e os bares ficavam lotados, e os casais curtiam o final do dia sentados nos muitos bancos de praça dispostos ao longo de toda a passarela tomando sorvete, dividindo uma lata de cerveja ou só curtindo a presença um do outro, até o mais contumaz dos putanheiros diria que ali o clima romântico era contagioso.
Agora imagine o estado em que ficou a minha paciência ao testemunhar a seguinte cena: ao voltar da corrida, ir para o meu quarto e tomar banho, saí do quarto e fiquei à espera da chegada do elevador para poder descer ao refeitório e usufruir do café-da-manhã a que tinha direito. Enquanto esperava, uns cincos brasileiros, três meninas e dois caras, aproximaram-se de mim e também ficaram à espera do elevador. Nesse meio-tempo, eles começaram a conversar. E...
Homem: Eu quero conhecer esse tal de Puerto Madero.
Mulher: Nós fomos lá ontem à noite.
Homem: Falam que é muito bonito, o que você achou?
Mulher: Ah... não achei nada de mais, nós que estamos acostumados com o nordeste...
Nordeste?
Acostumados com o Nordeste?
COOOMMMM OOOO NOOORDEEESTE??????
OOOOO NOOORRRDEEESTE DO BRAAASSSILLL?
Acostumados com o quê?
Com cheiro de merda? Com gente comendo lixo? Com gente esfaqueada? Com cachorro com sarna? Com mendicância? Com gente cagando na rua? Com gente comendo a merda de quem caga na rua? Com corrupção? Com coronelismo? Com intoxicação alimentar? Com praia poluída? Com profissionais do sexo mirins? Com tráfico humano? Com bagunça travestida de alegria? Com sujeira travestida de espontaneidade? Com analfabetismo? Com prédios históricos corroídos pela urina do povo? Com estupro? Com roubo? Com latrocínio? Com parricídio? Com genocídio?
É claro que é muito mais cômodo apontar os erros nos outros do que reconhecê-los em nós mesmos. E também seria injusto da minha parte dizer que estas características acima são privilégio do nordeste brasileiro. Ontem mesmo, aqui no Guarujá, uma mendiga, que fala sozinha e que de vez em quando anda com os seios à mostra no meio da rua, deu uma bela cagada vespertina na praça que fica ao lado de onde trabalho. (Sorte que nenhuma criança é louca o bastante para brincar na praça onde essa maluca desova os seus petardos fedorentos. As praças da cidade são de responsabilidade da Terracom, e é notório que tudo em que a Terracom encosta vira, literalmente, lixo – sobretudo as praças.) Todo dia, ao correr na orla da praia os 12 a 15 km de costume, eu totalizo, a cada km percorrido, no mínimo, 10 “andarilhos” emporcalhando a cidade com os seus vícios, com as suas loucuras e com as suas ideologias estapafúrdias de andarilho. O andarilho idealista, sempre recendendo a pinga, prega que é um cidadão sem fronteiras que não faz parte do sistema. Um sistema para o qual não produz nada mas que depende da produção alheia para sustentar o seu sistema que acredita não fazer parte do sistema. Há quatro anos, duas meninas que cursaram jornalismo comigo apresentaram uma tese sobre a vida dos moradores de rua na Baixada Santista. Elas entrevistaram, durante dois anos de árduo trabalho, mais de trezentos moradores de rua e dezenas de funcionários de prefeituras e de ONGs da região que trabalham para entender e tentar sanar essa problemática social. O dado mais alarmante apontava que, dos mais de trezentos moradores de rua que contaram as suas histórias, apenas um gostaria de voltar para casa, os outros sentiam-se absolutamente confortáveis com o seu estilo de vida. Eles alegaram que essa vida lhes dava algo que não trocariam por nada: Liberdade. Liberdade para sujar as ruas, liberdade para ofender e agredir quem não contribuí com as suas liberdades, liberdade para vandalizar espaços públicos, liberdade para demonstrar as sua práticas sexuais em público: liberdade para impor as próprias liberdades em detrimento da liberdade dos outros.
Havia outra maluca que morava a três quadras da minha casa que tinha, sem brincadeira, mais de dez filhos. E a cada ocasião em que trombava com ela, ela estava grávida novamente – provavelmente de mais doze. A diferença de idade entre eles era indiscernível. Eles pareciam ter nascido todos ao mesmo tempo. Havia meninos e meninas, mas todos tinham a mesma cara, as mesmas pulgas, a mesma boca suja, a mesma falta de corte de cabelo, o mesmo tamanho e o mesmo pedido na ponta da língua quando tocavam a campainha da minha casa: (voz de quem tá sofrendo, de quem tá faminto) “Por favor, senhor(a), você pode me arranjar um biscoito?”. Óbvio que nós, eu e a minha mãe, o meu pai nem fudendo, dávamos um pacote de bolachas recheadas para eles. Os dez ou doze ou quinze nunca vinham juntos, eles dividiam-se em duplas. Quando abríamos a porta e entregávamos o pacote de bolacha, eles davam um obrigado dolorido e iam embora como que rastejando. Cinco segundos depois, caso abrisse a porta, colocasse o pescoço para fora e olhasse na direção deles, eles estavam travando esta amena conversa familiar: “Sai, sua putinha, a porra da bolacha é minha, sua vagabunda, vadia!”, “Para, seu putão, arrombado, a mãe falou pra gente dividir o biscoito”, “Vai toma no cu, sua vaca, vai pedi bolacha em outra casa, caralho, quando eu crescer, eu vou comprar um revólver e vou estourar a tua cabeça, piranha, filha da puta!”, “Tá xingando a mãe, hein, tá xingando a mãe, hein...” Eu e os meus amigos os apelidamos de Lango, em referência ao brinquedo produzido pela Estrela cujo nome era Lango Lango. Nós poderíamos ter chamado a ala feminina dos Lango de Lango Girl, mas como não dava para saber quem era menino ou menina naquela porra, a não ser quando um Lango Boy chamava outro Lango Boy de “puta piranha” (como os Langos nunca andavam sozinhos, os palavrões também nunca vinham sozinhos. Na tradição Lango, a vagabunda jamais era chamada somente de vagabunda, mas sim de VagabundaVadia, assim como viado era viadogay, cuzão era cuzãoarrombado, sapatão era sapatãolambexota...), todo mundo era Lango. Cinqüenta pacotes de Passatempo ou Bono depois, os Lango tocaram em casa e, naquele fatídico dia, infelizmente, não receberam bolacha, mas ganharam, da minha mãe, uma sacola com várias frutas e pães recheados com queijo e presunto. A partir desse dia, ela passou a dar aos Lango a mesma sacola repleta de frutas e sanduíches variados. Dez sacolas repletas de frutas e sanduíches variados depois, como sempre faz aos domingos, o meu pai foi cuidar do jardim da frente de casa. Imagine a sua surpresa e regozijo quando encontrou dezenas de frutas e sanduíches enterrados no jardim. Os mesmos alimentos que foram dados pela minha mãe com a melhor intenção do mundo e que acabaram enterrados por quem não estava realmente com fome!

“Nossa, cara, é Recife. Isso é Recife.” Escutei esta comparação esdrúxula em San Telmo, onde aos domingos rola a Feira de San Telmo – a maior feira de rua da América Latina. Não quis nem olhar para a “carinha” do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira que proferiu essa estúpida indiferença entupida de inveja patriótica para não ter pesadelos. O meu amigo Victor, que viajou tanto para o Recife quanto para Buenos Aires, resumiu a viagem à capital do estado de Pernambuco com a seguinte frase: “Seria melhor se o avião tivesse caído... na ida!”.
Outro comportamento que escancara o temperamento provinciano do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira está ligado à alimentação. Na mesma manhã em que ouvi “Nós que estamos acostumados com o nordeste...”, enquanto tomava o desjejum no refeitório, ouvi as seguintes indagações de um membro “do povo que canta e é feliz”: “Já percebeu que aqui não tem feijão? Uai, rapaz, eu sou mineiro, não consigo ficar sem o meu feijãozinho com farinha, e aqui é tudo carne com papas fritas, nunca vi uma coisa dessas, não tem feijão, onde já se viu...”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à França é: “Onde fica o Mc Donalds mais próximo?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à Espanha é: “Onde rola um quilo aqui por perto?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai aos Emirados Árabes é: “Por favor, Habibs?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à Índia é: “Onde fica a Igreja Universal?”.
A situação verídica que mais corrobora com os exemplos anteriores foi protagonizada por uma mina que já morou na minha rua. Adivinha qual foi a primeira coisa que ela fez quando foi a Nova Iorque? Ela foi ao... ao... ao... Brazilian Day. Na verdade, ela nunca havia ido a Nova Iorque, e foi a Nova Iorque especialmente para o Brazilian Day. “E aí, Flávia, me conta como foi Nova Iorque, visitou a Estátua da Liberdade, o Brooklyn, a Washington Square Park?” “Tá panguando, meu, tu num me conhece, tu acha que vou perde tempo com essas coisa, eu fui é pro Brazilian Day!” “Uau, que demais!”
O maior pecado do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira é que ele só tem orgulho de ser brasileiro quando sai do país. E as características de brasileiro que ele insiste em ostentar no exterior são as mais escrotas possíveis. Ou melhor, o brasileiro que faz questão de ostentar essas características é o mais escroto possível. Já os estrangeiros fazem o caminho inverso. Ao saírem do país de origem, eles se despem da própria cultura para imergir na cultura do país que estão visitando. Quando os gringos fazem aquele discurso batido, “yes, Brasil, caipirinha, bunda, samba e alegria”, é que eles estão imersos na cultura brasileira. “E o futebol?” O futebol não é brasileiro. “E a feijoada?” É portuguesa. “E o carnaval?” Apesar de o nosso carnaval ser único, ele foi importado da Europa. “E o Nelson Rubens?” O Nelson Rubens é brasileiro. Retificando: “Yes, Brasil, caipirinha, bunda, samba, alegria, Nelson Rubens e... Nelson Ned.”.

O que tem na mala do homem brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira quando sai do país:
- Camiseta cor de abóbora
- Regata-machão verde marca-texto
- Camiseta com a foto desfocada do filho(a) como estampa
- 3 Abadás
- Bandana vermelha de micareta ou de jogos universitários
- Croques amarelo
- Sapatênis
- Mizuno camaleão... falsificado
- Tatuagem do camaleão
- Papeti roxa
- Calça branca
- Calça da Diesel... falsificada rasgada com selvageria
- Brinco de brilhante “falsificado” nas duas orelhas
- Óculos da Okley... falsificado
- Cuecas Box da Hunter... falsificada
- Nike 5.000 molas... original. O brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira deixou de pagar todas as contas para comprar três pares.
- Bata usada nas últimas cinco viradas de ano-novo
- Óculos de grau com armação transparente ultra moderna comprado na 25 de março sem qualquer tipo de receita
- Máquina fotográfica digital comprada na Pagé Gallery
- Saruel branca
- 5 potes de gel fixador do mais barato
- Perfume Kaiak, da Natura
- Livro do Chico Xavier para fingir que lê no avião
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Mr. Catra, Charlie Brown Jr, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo e, claro, Djavan.

O que tem na mala da mulher brasileira culturalmente confortável com a cultura brasileira quando sai do país:
- Silicone
- Bunda
- Silicone na bunda
- Batom vermelho
- Batom prateado
- Batom com brilho
- Fio dental – mesmo que seja para ir à Bulgária no inverno
- Nenhum sutiã
- Perfume only xota
- Micropano de chão como microshorts
- Camisinhas “astutamente” violadas
- Passaporte falsificado
- Talvez, só talvez, só uma suposição, cocaína no interior do corpo
- Talvez, só talvez, só uma suposição, boa-noite cinderela
- Saruel branco
- Tudo com decotão
- Salto bem alto
-10 caixas de água oxigenada
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, do grupo Pixote, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo, Justin Bieber, Rihanna, Shakira, Madonna e, claro, Djavan.

As armas que o homem brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira leva quando sai do país:
- Camisa da Seleção Brasileira
- Outra camisa da Seleção Brasileira
- Camisa do Flamengo (o time do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira – sem o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, o Flamengo teria apenas três torcedores)
- Feijão carioca
- Feijão preto
- Farinha
- Bife chiclete
- Ovo estatelado
- O cheiro da coxinha de frango
- Gírias
-Risada estridente
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Mr. Catra, Charlie Brown Jr, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo e, claro, Djavan.
- Nextel emprestado
- Pelé
- Deus
- Jesus Cristo
- Jeová
- E, agora, Maomé

As armas que a mulher brasileira culturalmente confortável com a cultura brasileira leva quando sai do país:
- Silicone
- Bunda
- Silicone na bunda
- Samba na bunda
- Pé na bunda
- Mão na bunda
- Nariz na bunda
- Pica na bunda
- Buceta convidativa
- Buceta que sai entrando em qualquer lugar sem ser convidada
- Perfuma only xota
- Fio dental – mesmo que seja para ir à Bulgária no inverno
- Tudo com decotão
- Talvez, só talvez, só uma suposição, boa-noite cinderela
- Camisinhas “astutamente” violadas
- Passaporte falsificado
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, do grupo Pixote, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo, Justin Bieber, Rihanna, Shakira, Madonna e, claro, Djavan.
- Recordações da família, dos amigos, dos 25 amantes regulares e dos 63 irregulares para tentar arrefecer a dor da distância provocada por sua escolha de fazer um pé de meia, quem sabe até uma nova família, como prostituta na Bulgária
- Camisa da Seleção Brasileira
- Outra camisa da Seleção Brasileira
- Camisa do Flamengo (o time do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira – sem o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, o Flamengo teria apenas um torcedor e meio)
- Feijão carioca
- Feijão preto
- Farinha
- Bife chiclete
- Ovo estatelado
- O cheiro da coxinha de frango
- Gírias
-Risada estridente
- Nextel emprestado
- Pelé
- Madonna
- Deus
- Jesus Cristo
- Jeová
- E, agora, Maomé

O êxodo descomunal de brasileiros a Buenos Aires se deve, sobretudo, à valorização da nossa moeda frente ao peso. Os brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira estão cagando para a arquitetura, para a culinária, para os vinhos, para os belos parques, para as inúmeras livrarias e tampouco estão curiosos para conhecer minimamente a cultura dos “hermanos”. Eles querem é comprar – e barato. Buenos Aires é a nova Paraguai. A diferença crucial é que nós nunca nos sentimos intimidados pelos paraguaios. Por mais que achássemos o Paraguai uma merda, quando solicitavam a nossa impressão de Ciudad del Este, nós dizíamos, sem interesse aparente, “ah, legal, valeu a pena”, instantaneamente suprimindo da memória que o telefone Panasonic sem-fio de última geração era de fato um telefone “Panasoanic” sem-fio da pior geração com mau contato no cabo que parou de funcionar “misteriosamente” duas semanas depois. O que pega é que nunca houve um jogador de futebol paraguaio que tenha sido considerado o melhor do mundo. Lá no Paraguai, eles têm o Cerro Portenho. Em Buenos Aires, eles têm um “tal” de Boca Juniors. O “tal” Boca Juniors detêm mais glórias que qualquer time do Brasil. E esse fato dói bastante no coração do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, afinal, o nosso maior produto de exportação, ainda e cada vez mais a duras penas, é o futebol, cujo símbolo esférico é fabricado pelas mãos de crianças de países subdesenvolvidos longínquos que só sabem o que é o Brasil por conta, possivelmente, da existência de um ser igualmente esférico: Ronaldo Fenômeno. O mesmo Ronaldo Fenômeno que foi chutado pela torcida “organizada” cuja escola de samba nunca ganha porra nenhuma e incorpora “fielmente” o espírito do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira (não me leve a mal, eu sou corintiano, só não sou imbecil). Não que não tenhamos ídolos, só não geramos pessoas em número suficiente capazes de reconhecer os feitos desses ídolos. Só fabricamos pessoas capazes de reconhecer ídolos fabricados por profissionais fabricados que na atual conjuntura patética da nossa sociedade não são considerados fracassados. E quando raramente reconhecemos esses ídolos legítimos, essas pessoas fazem o impossível para colocá-los em situações que os tornam irreconhecíveis, lamentavelmente para aqueles brasileiros que não são culturalmente confortáveis com a cultura brasileira: nós, que sabemos quem é Millôr Fernandes; nós, que sabemos quem foi Tarso de Castro; nós, que sabemos quem foi José Agrippino de Paula; nós, que sabemos quem é Ignácio de Loyola Brandão; nós, que nos emocionamos quando Ronaldo Fenômeno pendurou as chuteiras. De todo modo, parafraseando o seu Osmar, médico e pai de um grande amigo meu, “o futebol é a única manifestação brasileira capaz de suspender, por 90 minutos em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo, a afluência de hipocondríacos que atulha os nossos hospitais”.

Portanto, o maldito futebol (veja: que tanto amo) é e sempre será o fiel da balança nessa disputa infeliz que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira estimula há mais de 100 anos. Entretanto, contra todos os prognósticos servidos em doses cavalares como alimento de guerra pelos patronos tacanhos da nossa república varonil desde a tenra infância, os argentinos, nas extensas e edificantes discussões que tive principalmente com a classe proletária de Buenos Aires (basicamente, taxistas, garçons e recepcionistas do hotel), fazem quase de tudo para proteger o Brasil e, por conseguinte, os brasileiros. Como disse alguém que não lembro quem: “Os argentinos odeiam amar os brasileiros, os brasileiros amam odiar os argentinos”. Quando disse que o Brasil é um país caótico repleto de corrupção e violência e, em contrapartida, Buenos Aires não sofria tanto com esses infortúnios, eles lamentavam “não, não, o Brasil é muito grande, Argentina é muito pequena perto do Brasil, aqui os problemas são menores, Buenos Aires é menor que São Paulo, os problemas de um lugar são correspondentes com o seu tamanho”. Quando disse que a pequena Buenos Aires tinha mais livrarias que o gigante Brasil (vergonhoso, né? É a mais pura verdade), eles não acreditavam, “não, não acredito, é verdade? Não, deve ter alguma coisa errada, como? Buenos Aires tem mais livrarias que todo o Brasil? Não, não é possível, como pode...”. Quando disse que o Brasil, nos últimos dez anos, é o país que mais comete homicídios com armas de fogo no mundo, eles tentavam alguma coisa, mas a força para puxar a corda de resgate da moral brasileira começava a se exaurir vertiginosamente, “meu Deus, que pena, é assim mesmo?”. Quando disse que 75% da população brasileira são de analfabetos funcionais, ou seja, sabem ler e escrever mas são incapazes de interpretar um texto ou resolver um problema de matemática... quando disse que os nossos parlamentares aumentaram o próprio salário em 62%... quando disse que o deputado mais votado na última eleição era analfabeto legítimo e um péssimo artista legítimo... quando disse que 52% do faturamento de qualquer empresa no Brasil deve ser repassado aos cofres públicos... quando disse que havia no Brasil pessoas que desviavam dinheiro destinados a creches e entidades que cuidavam de crianças abandonadas com paralisia cerebral... quando disse que os motoqueiros brasileiros criaram um sistema unilateral de trânsito no qual o motoqueiro é sempre a vítima em qualquer incidente em que se meter... quando disse que o Pelé, que os brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira fazem tanta questão de dizer que é melhor que o Maradona, era tratado como um idiota fanfarrão tanto pela imprensa quanto pela opinião pública... porém, quando disse que há um certo grupo de brasileiros que afirmam que a arquitetura do Recife é igual a de Buenos Aires e que Puerto Madero é insignificante em comparação ao “bem cuidado” nordeste brasileiro, eles ficaram putos da vida, “más que boludo, más que boludo, maricón, hirro de la puta, traga las madres desses boludos...

A prova contundente de que o Brasil é um país de merda, suficiente para encerrar qualquer discussão com qualquer horda de brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira, é que, atualmente, OS NOSSOS MAIORES POPSTARS SÃO PADRES!








segunda-feira, 16 de maio de 2011

Justiceiro do Rock



A resenha a seguir foi publicada no jornal Folha De S. Paulo no dia 9 de fevereiro de 2011.
(Ela é de autoria de Carlos Messias.)

CD: Majesty Shredding
Artista: Superchunk
Avaliação: ** (duas estrelas eufemisticamente “indulgentes” e covardes para não dizer que achou uma merda)

“Em seu primeiro álbum após quase dez anos de hiato, a banda indie dos anos 90 comete dois erros comuns entre os seus contemporâneos na ativa: a autoindulgência e a autorreferência. O desleixo não tem mais o mesmo charme e o som característico da banda soa datado. Ainda assim, os saudosistas conseguirão se divertir com rocks ruidosos e pitorescos como My Gap Feels Weird e Learned To Surf." (De novo, Carlos Messias.)

Ao ler isto aí em cima, eu me pergunto: Que porra é essa? Será que ele ouviu o mesmo cd que ouvi? Será que ele leu a mesma merda que li? Será que ele se perguntou se realmente vale a pena comer “alguém” alguns degraus acima na hierarquia para publicar esta bosta? Será que o “alguém” alguns degraus acima na hierarquia questionou-se se realmente vale a pena ser sodomizado(a) para liberar a publicação desta bosta?
Destruir algo que você tem apreço causa desconforto. Agora destruir algo que você tem apreço com argumentos estapafúrdios causa... pena e... medo. Pena porque esses tipos “moderninhos” devem achar Arcade Fire a maior banda de todos os tempos. Medo pelo fato desses bundões estarem dominando o mundo como pestes hermafroditas. A ironia é que o Arcade Fire foi descoberto e lançado pela Merge Records – gravadora que tem como co-proprietário Mac McCaughan, líder do Superchunk.

Vamos à justiça!

Primeiro que usar palavras como autorreferência e autoindulgência numa crítica, ou melhor, numa microcrítica de um disco de rock é uma autoestupidez. Além disso, a maior estupidez é apontar a autorreferência como erro. (Eu nunca vi nenhum crítico ter a ousadia de apontar o Ramones como “vítima” da autorreferência.)
Após ler com atenção este belo “tratado” de Carlos Messias, Mac McCaughan tomou algumas providências com relação ao futuro do Superchunk:

“Cansamos dessa coisa de Superchunk. No próximo CD, não cairemos na armadilha da autorreferência, afinal, qual é a vantagem de prosseguir sendo nós mesmos? Portanto calcaremos nosso ‘novo’ som em um estilo meio Preta Gil, meio Edson Cordeiro fase dance-ópera, meio o ‘originalíssimo’ The Gossip...

“Não tocaremos músicas antigas na próxima turnê. Evitaremos, ao máximo, a praga da autorreferência. Já adianto que terá muita coisa de Miley Cyrus, Usher, Shaggy, Corona, Matisyahu e nada nosso! Foda-se a autorreferência, viva o plágio!”

O apelo de Mac McCaughan - em deferência a Carlos Messias - em prol da erradicação da autorreferência no mundo da arte foi aderido por muitos personagens, de níveis distintos, do universo artístico. Vejam alguns depoimentos:

“Meu pai me disse, no leito de morte, que a pior coisa que ele fez na vida foi ser um artista inovador. Cada tentativa que ele teve para mostrar isso, e não foram poucas, afinal, são 998 discos, o deixava profundamente triste a ponto de desejar, 86.400 segundos por dia, ser a bunda do Boy George e ter o cérebro do Chorão, do Charlie Brown Jr”, declaração de Ahmet Zappa, às lágrimas, ao revelar a maior decepção do seu pai, Frank Zappa.

“Graças à internet, tive a possibilidade de assistir ao mais belo show que vi na minha nada gloriosa vida até agora. O show aconteceu em 2001, no Brasil, em um festival chamado Rock’n Rio, e a banda responsável por essa dádiva, infelizmente finada, é a banda menos autorreferente da história da música: vos apresento Surto!”, trecho da última entrevista de Bob Dylan para a Rolling Stone americana.

“Por que Deus não me permitiu ter a voz da Sandy?”, derradeiras palavras de Luciano Pavarotti antes de morrer.

“Em novo álbum, Iron Maiden larga o metal e abraça o “disco-punk” – o estilo menos autorreferente da atualidade”, manchete de capa da revista Kerrang!

“Obrigado, agora posso morrer em paz”, desabafo do autor americano Phillip Roth ao ser agraciado com o Prêmio Pulitzer pelo 'soberbo' livro Ctrl C... Ctrl V – Eu roubei o cérebro do Pedro Bial, lançado pela editora Google.

Carlos Messias dará consultoria na Columbia University, em Nova York, no dia 32 de julho, a 'velhos' artistas que revolucionaram o rock independente americano e mundial e que, infelizmente, não conseguem dar um rumo menos autorreferente a suas carreiras. Presenças confirmadas: Bob Mould, Mac McCaughan, Black Francis, Henry Rollins, Jello Biafra, Kevin Seconds e Rivers Cuomo. Participação especial do guru Lúcio Ribeiro”, anúncio de capa do jornal The New York Times.

“O desleixo não tem mais o mesmo charme e o som característico da banda soa datado.”

Meu Deus! Se há uma característica da qual os artistas da atualidade são desprovidos é da autorreferência. E se há um período dentro do qual esses mesmos artistas poderiam viver em harmonia é o Novo Datado, ou seja, uma contradição à identidade. Eles não fazem parte de uma data, mas de todas as datas. Eles são, por enquanto e, assim espero, por pouco tempo, os últimos dos titãs. E, como últimos, eles vivem dos restos dos que os precederam. E, às vezes, esses restos foram ridicularizados enquanto viveram por inteiro no Planeta Terra. Portanto, lhes pergunto: Qual é o nome do resto que, enquanto inteiro, era tratado como puta infectada e, hoje, é a principal matéria-prima para qualquer expoente do Novo Datado? Acertou, a antes escorraçada Dance Music. A mesma que você chamava, trajado com a camiseta do AC/DC, de poperô.

Presumo que a maioria das pessoas odeia quem recorre a citações alheias para defender um ponto de vista. Em síntese, é isso que expressa e defende o “lixinho” escrito por Carlos Messias. Entretanto, para fazer a alegria dos “Carlinhos” que estão emperiquitados por aí, e para não soar datado, devo reconhecer: NEYMAR INVENTOU O CORTE MOICANO.










sexta-feira, 13 de maio de 2011

Guarujá Rock City



“Escrever uma história do Guarujá para quem não é do Guarujá pode ser uma coisa difícil. Quem sabe talvez deixar de lado ou do lado de fora tudo que há de certa forma cativantemente colorido no mundo seria um modo de descrever o Guarujá à perfeição. Eu conheço isso aqui do dia em que nasci desde quatro anos depois. Sempre foram três pessoas e as três pessoas são a minha família com o acréscimo e a ruptura o acréscimo e a ruptura o acréscimo e a ruptura o acréscimo que faz da vida uma sucessão de sucessões molhadas ou secas estáticas ou incontroláveis.”
Trecho da poesia Brados de um Jesus anão com
Um bellini no rosto e uma verruga no copo
, do livro Na Pior No Havaí: época de furacões; uma gorda chata, histérica e mimada a tiracolo; uma nota de 10 dólares presa no elástico da sunga; uma ponta com muita amônia umedecida por lábios com herpes do antigo proprietário na carteira; o livro de memórias do Lobão como válvula de escape; a discografia completa de Laura Pausini no ouvido e um revólver calibre 38 com uma só bala no tambor – de festim, de Arno Palumbo, editora Napalm na Micareta Press.


Rock no Guarujá é tão possível quanto um concurso de camiseta molhada na Sibéria. Não há como. Não existe. Para ser sincero, o meu grande sonho é (OU ERA) escrever uma biografia do rock guarujaense. As grandes bandas que chegaram a encher estádios com arquibancadas vazias. Os artistas inovadores que não conseguiram revolucionar o mundo, mas pelo menos as ruas onde moravam, provocando o êxodo da vizinhança que não agüentava mais tanto barulho. Os bares mitológicos. Cereja’s Drink’s e a sua clientela fiel composta por falta de pessoas. Quando havia pessoas, faltavam pessoas bonitas. Ou sóbrias. Ou acordadas. (Ou com mais de dois dentes na boca.) Cantinho’s Bar e o seu ambiente acolhedor. Tão acolhedor que a proprietária decidiu se enforcar dentro do próprio bar, atrás do balcão. Toca do Tubarão, a Amsterdam paradisíaca sem holandesas gostosas e com o público mais batido da Baixada Santista. Basta ir até a Bola de Neve para reencontrar todo mundo. A Festa, o evento que parava a cidade e levava todos os cinqüenta e três habitantes a uma jornada regada a fumaça de cigarro, cerveja quente em copo de plástico, vídeos de surf projetados em um telão rachado, bandas cover de Alanis Morrissete, sexo prazerosamente irresponsável que culminava em mais uma paternidade antes dos 18, ficadas com a mesma menina estranha que era amiga de todas as outras meninas (“ah, a Jú é muito legal, você tem muita sorte, cara”) que não queriam ficar comigo (à exceção de Daniela Ramos, mas aquilo não era uma mulher, tava mais para um monstro, a fusão de Ariats, Willow, o da Terra da Magia, com a risada, e não com as tetas, da Fafá de Belém) por conta da inestimável simpatia que desprendia-se daquela boca que era tão grande que engoliria a China com todo mundo dentro, inclusive com o Yao Ming, e brigas ocasionais e espaçadas que transformavam A Festa em A Briga e A Briga como a grande ocasião da festa. Jambococo e a sua agradabilíssima temperatura de sauna mista freqüentada só por homens, alguns caucasianos, outros negros, pouquíssimos japoneses que eram só japoneses, muitos japoneses que também eram paraibanos, libaneses a rodo herdeiros de lojas de móveis invariavelmente às moscas entretanto com as carteiras de couro verdadeiro atulhadas de dinheiro, metaleiros-funkeiros que usavam o som da guitarra distorcida como desculpa para afundar o seu nariz com uma cabeçada chata, punks que confundiam atitude com mendicância, punks que confundiam “altitude” com “atitude”, punks que confundiam Legião Urbana com punk rock, punks que confundiam a rua com privada e hippies que confundiam chorume com perfume. Manguetown, uma noite capaz de mudar drasticamente os próximos dez anos de sua vida – isso se você conseguisse chegar até lá. Os dois primeiros passados em uma clínica de reabilitação. O próximo par de anos usando tudo que deixou de usar e enfiando tudo em tudo que deixou de enfiar no período de privação. Mais dois anos com o vírus do HIV. Um ano espalhando o vírus do HIV e rechaçando boatos. Seis meses de arrependimentos acompanhados de mais seis meses de iluminação e purgação perante a Deus. Um ano de recriminações às libertinagens da sociedade e de convicção milagrosa quanto à cura da “sua” Aids. E o último ano prostrado em uma maca maculada de sangue alheio % alheio % a tudo % devido ao todo % e a falta de tudo % sem nada % sem tranças % às traças no corredor de alguma policlínica fétida à espera da morte que nem Deus conseguiu interromper. Os organizadores da Manguetown alugavam sempre a mesma mansão de dois andares no bairro da Enseada, a preço de banana. O térreo, onde ficava o extenso quintal, era destinado à apresentação das bandas, basicamente hardcore melódico, covers da Alanis Morrissete, Killing The Name como apelação infalível - até a mina que cantava Alanis Morrissete cantava Killing The Name para acordar a galera entediada que ficava gritando “sai fora, putinha do caralho!”. O primeiro andar era onde ficavam os quartos. Assépticos e cheirosos como só o esgoto que passa pela Favela do Caixão pode ser. Um cara e uma mina se encontravam invariavelmente chapados por alguma substância, desde drops Dulcora até cocaína. Tal como um roteiro de filme pornô, conversavam um pouco para logo procurarem um quarto vago no qual pudessem tirar a roupa e transar bastante. Quase sempre no pelo. Das sete, cinco: chato, clamídia, sífilis, gonorréia e gravidez; ou gravidez, crista de galo, aids, chato e sífilis; ou clamídia, aids, gonorréia, gravidez e crista de galo. O terceiro andar consistia em um espaçoso terraço-parque de diversões-reduto caindo aos pedaços para os usuários de todas as drogas possíveis e imagináveis para o poderio econômico de uma cidade de nono mundo num país de terceiro mundo que, à época, anos 90, estava mais para quinto.

E os festivais? Os festivais que subverteram os ditames repressores e pararam guerras, nos quais guitarristas geniais de pele negra vestidos como ciganos tocaram hinos dos seus países como forma de protesto enquanto a galera se afogava no ácido e afundava na lama? (A lama nunca foi um problema. Ela é uma substância imanente do nosso povo. Vide o epíteto “Pé de Lama”.) Os Estados Unidos tiveram o emblemático Woodstock e o cult Lolapalooza. A Inglaterra tem o Festival da Ilha de Wight, o festival de Glastonbury, o Reading Festival, entre tantos outros. A Espanha tem o Sonar Festival. O Brasil já teve o Rock in Rio, o Hollywood Rock, o Monsters of Rock, o Tim Festival etc. E nós, aqui do Guarujá, que tipo de festival nós tivemos? (Além do Guarujá Verão Show, que, vamos ser sinceros, é uma merda, uma bosta total, todo ano é o mesmo Chiclete com Banana - se você é chicleteiro, Deus te abençoa; se você não é chicleteiro, Deus que se foda!), a mesma Ivete Sangalo, a mesma Claudia Leite, os mesmos César Menotti e Fabiano, em cima do palco, acima do peso e abaixo da crítica (o quê, de certo modo, pode ser encarado como um elogio). Nós tivemos, em julho de 1999, em pleno verão fora de época porque à época aqui era inverno mas isso não faz muita diferença aqui porque aqui não é Campos de Jordão portanto dá para ficar bêbado por bem menos de 300 reais (Maiúsculas), O OUSADO, O DESBUNDADO, O PORNOGRÁFICO, O SUBVERSIVO, O INCLASSIFICÀVEL, O MULTIRRACIAL, O SANGUINOLENTO, O TRANSFORMADOR, O FILANTRÓPICO, O MISANTROPO, O BILÍNGUE, O SIMBÓLICO, O... O... O... O... O... o único festival de rock na história do rock que teve como banda de abertura um grupo de pagode – O APOCALIPTICAMENTE CLASSE MÉDIA “WIZARD BANDS”! (Exato, a filial caiçara da escola nacional de línguas internacionais organizando festivais musicais no intuito de dissuadir a discriminada juventude guarujaense afetada pela atmosfera ao mesmo tempo melíflua e torpe da arte a não cometer suicídio ou castração coletiva na singular Praça das Bandeiras que não possui uma mísera bandeira.)

A Wizard contava no seu corpo docente com uma gama de professoras estúpidas mas talentosamente gostosas e adeptas à felação em alunos que porventura viessem à tona com suas toras sedentas por empirismo licencioso nas longas madrugadas sonolentas de sonhos lúbricos em vigília entorpecida por ervas com excesso de amônia. (Eu estudei lá durante dois anos e posso afirmar uma coisa: não aconteceu nada disso comigo.) Vinte bandas participaram da primeira edição do festival. A primeira edição deu tão certo que nem houve a segunda. Das vinte bandas, dez classificaram-se para a fase final. Das dez finalistas, as três primeiras colocadas ganharam prêmios. E que prêmios! Uma camiseta da Wizard. Uma. Havia bandas com sete integrantes. E uma camiseta. Além do mais, horrorosa! Uma camiseta da marca de surf Antiqueda, uma das proeminentes patrocinadoras do evento. E alguém se pergunta. “Uma?” Uma. Um cd da banda So What! What? So What! What? So What! Whatcha Whatcha On? Banda paulistana de hard rock farofa que encerrou o festival com um show digno de nota: 0,1. Direito à gravação de três músicas no estúdio do lendário e pontual produtor santista Boca. E, das três músicas gravadas, a honra de ter duas músicas no histórico CD do festival: Wizard Bands Vol 1. O CD custava dez reais e para todas as dez pessoas que ofereci o CD as dez ofereceram no mínimo dez pertinentes motivos para não comprar o CD. Então eu dei os CD’s. Ao meu pai, a um amigo da escola que disse para umas meninas gostosas do Paraná que adorava morar em “uma cidade litorística”; à minha mãe, que, obviamente, amou; à minha namorada da época, que já à época me chifrava com caras mais fortes que só uma época depois fui descobrir; a um entulho amarelo que estava estrategicamente parado em frente à minha casa; a mim mesmo; a mim mesmo de novo, ocasião na qual o transformei em patins de patinação no gelo, só que sobre o asfalto esburacado e sob um calor de 43 graus, e bailei como se estivesse no perobístico Holliday On Ice; a uma criança de rua que logo depois o utilizou, de modo inteligente, como frisbee; a uma macumba que estava diabolicamente parada na esquina da minha casa; e, finalmente, a Deus, que, desconfio, não curtiu, isso porque dois dias depois quebrei o meu tornozelo andando assim do nada.
Eu fazia parte da banda RKF – a banda mais sexista a não fazer sexo do rock litorâneo. Para ser sincero, éramos todos virgens. Embora nos enganássemos ao disseminarmos histórias sacanas sobre empregadas domésticas apoiadas de quatro sobre tanques de lavar roupa, sobre amigas mais velhas das irmãs mais velhas que romperam a barreira do som com os seus urros apocalípticos de prazer e dor enquanto nos deixavam romper os seus hímens porcalhões que hiperbolicamente quase nos fizeram morrer afogados de um líquido parecido com suco de tomate caudaloso, sobre primas gostosas que na realidade eram bagulhos incapazes de provocar qualquer alusão a qualquer coisa sobretudo ao tipo de coisa que pode ser identificada como tudo, menos coisa, sobre anãs atletas cadeirantes campeãs de luta greco-romana que levantavam...

Outra banda de destaque era a banda mirim pacifista Fuck’n All. Garotinhos de 12 a 13 anos que eram influenciados evidentemente pela versão mais velha e imaturamente madura: RKF. Como o RKF, eles mandavam todo mundo pra casa do caralho, bebiam pinga direto do gargalo, deixavam a cueca samba-canção à mostra, viam as mulheres como objeto, eram mais promíscuos quanto ao estilo musical do que a bunda do roqueiro Serguei jamais será, mas também não comiam ninguém. Um espécime assaz curioso nessa trupe de cinco garotos era o outro vocalista, porque havia outro além do outro, Luquinha. Fruto de uma educação experimental, anos depois de deixar a banda e a gloriosa camiseta do Olodum que provocava suspiros nas gatinhas do hardcore, Luquinha foi preso na mesma cela do irmão mais novo. Dias depois desse reencontro, os outros 147 presos que dividiam a cela com os dois irmãos, que era da magnitude da casa do Jerry, pediram transferência porque não agüentavam mais as selvagens brigas dos dois afortunados.

N.D.A entrou para história do rock guarujaense não pela qualidade musical, muito menos pela originalidade do nome, mas por conta do comportamento fantástico de um dos integrantes: vamos chamá-lo de A (até parece que ninguém sabe de quem estou falando), baterista e mágico. Retificando: péssimo baterista e mágico mediano. A mágica de A não se relacionava com as ferramentas usuais do mundo dos mágicos. Esqueça cartas de baralho, pombas brancas, cartolas pretas, mulheres cortadas ao meio e ilusionismo. Não era nada ilusório, era tudo verdade. O que sumia, sumia. E o poder da sua mágica cresceu ainda mais por conta de sua mudança do Guarujá para Curitiba. Por exemplo, você e A (não me pergunte quem, você sabe muito bem de quem estou falando, lembre-se daquele boné importado que você tanto gostava) estão na mesa de um bar. De repente, você coloca uma nota de cem reais sobre a mesa para checar algo no bolso de sua bermuda. Quando você olha de novo para a mesa para pegar a nota de cem e recolocá-la no bolso, ela sumiu. Foi assim com o meu CD “importado” do The Cramps. Com as blusas de outros amigos. Óculos. A caixa da batera do Kellinho. Vídeos. Bonés. O sumiço repentino na hora de pagar a conta no bar. A aparição repentina em festas para as quais não fora convidado...

Da metade ao fim da década de 90 o Guarujá foi encurralado por um tardio frenesi de música grunge – em suma, rock velho travestido de novo – executada por surfistas idosos que já naquele período tinham a mesma idade que nós, eu e os meus amigos sedentos por buça (qualquer buça que fosse realmente uma buça), temos hoje. Atualmente eles têm a mesma barriga, a mesma erosão capilar, a mesma incontinência urinária, o mesmo bundão, o mesmo intermitente pigarro, o mesmo bigode amarelado, o mesmo receio em falar em voz alta sobre o temido exame do toque, o mesmo descuido em peidar em público, a mesma obsessão por uma só marca de cerveja porque as outras, agora, dão dor de cabeça, a mesma cor no nariz do nariz de palhaço, a mesma decepção no ato de descabelar o palhaço por conta da insistente indolência do palhaço, o mesmo desembaraço de enfiar a mão no rabo e coçá-lo em público, o mesmo insuportável, num dia bom soa até engraçado, estertor noturno, o mesmo questionamento matutino quanto à possibilidade do próprio pênis estar realmente diminuindo, a mesma sensação lancinante que, a todo momento, menos quando ele olha para a bunda de alguma menina que tem a idade da própria filha e percebe que mesmo com esta vista privilegiada a porra do pau velho enrugado não sobe, o acomete ao sentir que algum soturno diligente cidadão do Vale da Morte está à espreita para levar a próxima encomenda e a próxima encomenda, cruzes ++++++, ser ele – as mesmas neuroses dos nossos pais.


Portanto, nós – em micaretas ao ar livre nós só pegávamos friagem – estávamos cagando e andando para eles. A exceção dessa trupe, que evitava que nossa bosta fosse encontrada a caminho do banheiro da escola, nos campos de futebol, nas salas de visita das nossas avós ou na escadaria da igreja, chamava-se Chacras. Afinal, além de ensaiarem na nossa rua (o baterista, o bom e “velho” amigo Yuri, que, há poucos anos, e com toda a propriedade, poderia ter servido de dublê em Hollywood para a adaptação cinematográfica de Hulk - a propriedade se deve ao abuso de chá de cogumelo que “o deixou verde”, palavras do próprio), eles nos induziram indiretamente a esquecer o futebol e a enchermos o saco estéril dos nossos pais para comprar instrumentos barulhentos. (Filhos da puta!) Eles eram em quatro, e talvez alguns eram vivos, e um deles, não o Yuri, posteriormente se viu envolvido em alguns crimes amenos (roubos e assassinatos, basicamente) na selva amazônica. Adoravam beck (cá entre nós, quem não curti... uma Becker, a mais pura cerveza chilena) e tinham uma espécie de quinto integrante, o homem responsável pelas letras, sujeito incógnito que, na minha humilde opinião que julga estar certa quase sempre, era o verdadeiro gênio da banda, o qual, infelizmente, não me recordo o nome (na verdade, nunca soube o nome dele, era mais recluso e mais talentoso que Thomas Pynchon), mas sei que era o tio do Yuri, e que tinha bigode, e que era careca, enfim, o perfil do campeão. Agora, sinta o drama:
“Titanic de pobre,
É a catraia que sai do Itapema
E atravessa pra Santos.”
Note a singeleza desta frase:
“Quando chega a sexta-cheira...”
O compromisso e a sabedoria de homenagear o que dá prazer:
“Rabo de Galo,
Três Fazendas,
51,
Velho Barreiro,
Álcool Puro,
Óleo diesel,
Cloro,
Solvente,
Merda de Pombo,
Vômito de cachorro com sarna,
Urina de prostituta de Chernobyl...”
O compromisso com a história do povo:
“Essa é a história do catador de lixo da praia que dava a bunda em troca de lata”

E o passado recente? Aquele momento no qual nos conformamos que talvez teríamos que fazer faculdade de engenharia elétrica? Tristes dias cada vez mais longínquos porém intensamente nítidos que nos afligiram em sua vertiginosa passagem ao iluminar, paulatinamente, com requintes de sadismo e doses cavalares de humor lúgubre, as vogais em forma de neon colorido da palavra HOBBY? Por que o Bolinho, depois que tornou-se straight-edge, ficou mais gordo? Por que escolher Ian Mcaye como referência ao invés de Tommy Lee? Por que cursar jornalismo já que, assim que me formei, a última coisa que eu queria ser era jornalista? Por que Bob Marley, se não fosse artista, seria biólogo? Por que Peter Tosh, se não fosse artista, seria nutricionista? Por que balançar a cabeça, tal qual um headbanger, se o cabelo sumiu?

Aos 20 anos, as responsabilidades rondam como células defeituosas. Para ganhar dinheiro com nossa música teríamos que transformar a nossa retidão e autenticidade nas diabruras boçais do Tihuana, no radicalismo naturalmente grisalho e tingido de caju do Capital Inicial, na fúria púbere descerebrada e celebrada aos 40 do Charlie Brown Jr, no som da risada enlouquecida de alguma piada insossa contada por um eminente funcionário da MTV, mas preferimos, ainda bem, soa mais verdadeiro do que as mentiras que os outros contam a si mesmos, ser empacotador de supermercado a compactuar com a sensação de sucesso que depende da anuência de outras pessoas mais estúpidas que a gente.

Ainda há mais bandas. Muitas bandas. Dos mais diversos estilos e idiossincrasias. De diversos bairros e das mais longínquas fronteiras. Algumas só ensaiavam aos sábados e outras uma vez por mês. Havia aquelas que nunca ensaiavam e aquelas que ensaiavam todos os dias mas que parecia que nunca haviam ensaiado. Bandas tatuadas, bandas depiladas, bandas marombadas, bandas destiladas, bandas drogadas, bandas nudistas, bandas evangélicas, bandas gordas, bandas pobres, bandas exibidas, bandas endiabradas, afinadas, desafinadas e empoeiradas. Enfim, bandas desgraçadas. Sem exceção. Guarujá não é só a Pérola do Atlântico. Guarujá não é só a cidade onde Silvio Santos tem um hotel. Guarujá não é só a cidade onde Santos Dumont se suicidou. Guarujá não é só um fracasso cada vez maior no turismo. Guarujá não é só uma das maiores Mecas de bandidos engravatados. Guarujá não é só uma das cidades brasileiras com uma sublime beleza natural que prima vertiginosamente para a decadência irreversível. Guarujá é também o maior cemitério de artistas que existe no Brasil. E, a cada segundo, eles continuam morrendo.
Nada como um dia após o outro para algo morrer como sempre.




(A partir da próxima semana, toda segunda-feira, um novo texto.)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Nove de maio

"A juventude começa aos 30. Quando temos catorze, nem sabemos o que é juventude, muito menos que seremos, aos 30, tão saudosos a ela a ponto de não vivê-la intensamente quando jovens", trecho do livro 30 anos sem dar a bunda, de Arno Palumbo, editora Anão Zumbi


As luzes amarelas e vermelhas. As luzes amarelas e vermelhas que vejo nas entradas e saídas dos estacionamentos escuros, antigos e invariavelmente úmidos. Entre a saída e a entrada, há o mesmo lugar de sempre. Elas fazem de mim mais novo. Elas, as luzes. Elas, a saída e a entrada. E o mais novo de mim ficou nos anos 80 e jamais irá voltar. Nem a minha memória é capaz desse feito. A ficção está aí para ser usada a favor de quem não estava lá no lugar que nunca esteve em lugar algum. Só na cabeça de um cidadão que trabalhou durante um longo período para tornar verossímil a história de um grupo de coelhos que fala pelos cotovelos e só com a boca que foi impressa numa pilha de papéis vagabundos encontrada em um escuro, antigo e invariavelmente úmido estacionamento que possui uma entrada e uma saída e uma luz amarela e outra vermelha que me fazem recordar o mais novo de mim que ficará para sempre inalterável entre a saída e a entrada da minha memória.



(Fotografia: A memória não é capaz desse feito.)


(Excepcionalmente, nesta quarta-feira, postarei outro texto.)


















segunda-feira, 2 de maio de 2011

1º Round: Maria Bethânia e por quê, em casos excepcionais, bater em mulher pode ser benéfico à sociedade


“Fazer neném é muito legal!”
Trecho da fábula infantil Abecedário Maluco: A de amor, B de baixinho, C de Ceborréia, de autoria de Arno Palumbo, editora Pompoarismo e Bolinhas de Gude

Se eu visse a Maria Bethânia agora, a primeira e única atitude que tomaria, de supetão e com a maior tranqüilidade possível, era dar um tapa na cara dela. Um só tapa. O certeiro. Aquele que não deixa margem para dúvidas e questionamentos. Bem de frente, olhando olho no olho. No lado esquerdo do rosto e com a minha mão direita. O braço curvado em forma de L e a mão bem aberta. Os dedos separados e esticados. O som de uma salva de palmas de uma única palma: uma sonoridade estridente, breve e seca. “Maria Bethânia?” “Oi, meu querido, no que eu posso te ajudar?” “Pá!”
O modelo que me inspirou a conjeturar as nuances desse tapa foi o que o meu amigo, vamos chamá-lo de S, deu em uma mina na extinta balada Avelinos. Ele estava lá, de boa, sacando as mulheres, enquanto no meio da pista as pessoas dançavam forró (Forró? Nos lugares em que rola música boa as mulheres não usam decote quase até o umbigo, não têm silicone, não andam praticamente com a bunda de fora, não têm silicone na bunda, não são analfabetas, não ligam para o tamanho da pança e não têm atributos físicos para ingressar na carreira de garota de programa de luxo). S é um cara bonitão, sempre se deu bem com as mulheres, tanto com as bonitas quanto com as feias (mesmo que hoje pareça que ele tenha comido o Mc Donald’s com todo mundo dentro), o seu xaveco era um absurdo de tão absurdo, estranhamente era o que elas queriam ouvir. Ele viu duas meninas dançando forró juntas. Não eram lésbicas. Eram esnobes. Na verdade, uma só era esnobe: a feia. A outra era bonita mas sabia que a amiga era possessiva. A feia, segundo o meu amigo Victor, “parece a Claudete Troiano”. S queria dançar com a bonita, mesmo que nem na imaginação mais fantástica ele consiga dançar sequer Macarena. Ele precisava de um companheiro que, no mínimo, pudesse entreter a feia. Um companheiro não, um guerreiro. (Segue o trigésimo nono mandamento dos 1.900 mandamentos do jovem caiçara de classe média: quem pegou uma mulher que parecia o Márcio Santos, o zagueiro do tetra, não serve de parâmetro e deve caminhar sozinho, com as próprias pernas, daqui para frente - coisa que ele fez muitíssimo bem, sem a nossa presença para desencorajá-lo.) Entretanto, nessa ocasião, ele não conseguiu ninguém que tinha mais de sete dentes na boca. Conseguiu, sim, um cara que tinha menos de sete dentes na boca e que se tornou alcoólatra aos sete anos de idade e que, naquele dia, já vinha bebendo desde as sete horas da manhã. Vos apresento Zezinho. Zezinho tinha um aspecto tão bom que, certa vez, ele foi confundido pelo guardador de carros de uma outra balada como um guardador de carros rival: o detalhe é que ele estava saindo do nosso carro quando o fato ocorreu. Zezinho era um legítimo baiano e, como quase todo baiano (sempre há uma exceção, embora eu não conheça nenhuma), mijava em todo lugar: no meio da rua, perto de crianças, no próprio guarda-roupa, sobre cachorros, nas próprias calças, nas próprias crianças. Naquele dia, a caminho da balada, ele quis mijar dentro do busão, mas nós conseguimos dissuadi-lo. (Sim, uns quarenta e cinco minutos de busão na ida, uma meia hora na volta, e foi a época mais feliz de nossas vidas.) O bom de andar com o Zezinho na balada era que, para os olhos daqueles que não sabiam que ele era um sujeito super de boa, parecia que ele escondia uma faca no cós da calça. O fator negativo de andar com o Zezinho na balada era que talvez ele fosse confundido com um mendigo, e se já é raro ouvir da boca de alguém que conheceu o amor de sua vida na balada, é muito mais raro ouvir “encontrei o amor da minha vida na balada na companhia de um mendigo super simpático”. Então sobrou Zezinho para S e S sabia que as suas chances de êxito estavam quase zeradas. Zezinho deve ter iniciado-se sexualmente com animais, portanto “Claudete Troiano” poderia muito bem ser a mulher da sua vida. S aproximou-se das duas com Zezinho seguindo o seu rastro. S pediu a Claudete Troiano se, porventura, “eu poderia dançar com a sua amiga?”. Claudete disse simplesmente que “não” e deve ter pensado “se ele pedisse para dançar comigo, até toparia”. S sugeriu a Claudete Troiano dançar com Zezinho. Claudete Troiano olhou para Zezinho de cima abaixo, surpreendeu-se pelo fato de ele estar usando sapatos, e se fosse capaz de vociferar mil vezes a palavra “não” num mísero segundo, ela vociferaria. Contudo, ao invés disso, ela dirigiu-se a S e mandou um “não, sai fora, vai se fuder”. S olhou para trás, na nossa direção, e deu uma risadinha de desconforto. Nós, comentando a situação na nossa mesa-redonda, elegemos Claudete Troiano como “um zagueirão filho da puta!”. Zagueirão é a mina que atrasa a vida das amigas mais atraentes. S caminhou na nossa direção, talvez em busca de consolo ou de uma luz. Foi quando Victor lançou a frase cataclísmica: “ela parece a Claudete Troiano”. Zezinho estava dançando forró sozinho enquanto um vácuo se formava em torno dele. S voltou até as duas e tentou mais uma vez. Claudete Troiano, que, no momento, não sabia que a chamávamos de Claudete Troiano, disse “não” novamente, “sai fora” novamente, “vai se fuder” novamente, acrescentou um “vai tomar no cu”, “um filho da puta”, se arrependeu um pouco do que disse ao presumir que Zezinho podia tirar a faca do cós da sua calça encardida e questionou-se por que S não percebia que ela era a mais gostosa das duas. A Bonita chegou à conclusão que, se Deus existisse, ele provocaria um infarto fulminante naquela sua amiga estraga-prazeres “que parece a Claudete Troiano, sim”. Zezinho continuou a dançar forró enquanto um sorriso incriminador rasgava a sua cara e um cheiro de urina se espalhava por toda a pista: exato, ele tava curtindo uma mijada. S arriscou uma última tentativa, colocou a boca próxima do ouvido da Claudete Troiano que estava prestes a saber que era a Claudete Troiano. Claudete Troiano pensou, excitada, “será que agora ele se tocou?”. S disse: “pô, deixa eu dançar com a tua amiga, não percebe que ela quer?”. A amiga disse só para si mesma, “é, isso, eu quero, para de dançar comigo, tenta encarar o mendigo, ele até usa sapatos”. Claudete Troiano sugeriu “por que você não vai chupar o pau do teu amigo e para de encher o meu saco?” Zezinho ouviu aquilo e pensou consigo que “encarava numa maior”. Então S perdeu a paciência e disse com toda a calma e não com todas as letras – ele sempre teve problemas com a língua portuguesa: “então beleza, Claudete Toiano”. Claudete Troiano, agora sabendo que era Claudete Troiano (automaticamente ela colocou o R à frente do T), empurrou com força desmedida a cabeça de S. Instantaneamente, S desferiu um belo tapa na cara de Claudete Troiano. O tapa foi tão perfeito que o cabelo de Claudete Troiano foi todo para o outro lado da cabeça. (Para que esse efeito ocorresse na missão Maria Bethânia, eu teria que estapeá-la em meio a um furacão.) Parecia um policial irascível batendo na cara de um surfista só pelo fato do surfista estar fumando um beckzinho, à noite, na praia. Parecia um policial irascível, em cima de sua portentosa bike e trajando uma máscula bermudinha curta, batendo na cara de um engenheiro alimentar só pelo fato do engenheiro estar fumando um beckzinho, à tarde, na praia do Guaiuba. A primeira coisa que fiz foi olhar para o semblante do segurança que vinha testemunhando toda a treta. Quando a mulher apanha de um homem na balada, a culpa é do homem. Quando uma motocicleta se choca com um carro, a culpa é do motorista do carro. Quando, anos atrás, uma mina que fazia jiu-jitsu cegou uma cara na Phoenix, o cara foi o culpado. Então logo concluí que S estava fodido, portanto o peguei pelo braço, o puxei para longe da confusão e o mandei imiscuir-se no meio da multidão. Claudete Troiano ficou gritando, toda descabelada (como se Palmirinha tivesse acabado de carbonizar mais uma receita e foder com todo o andamento do programa), olhando para todos os lados e perguntando-se “onde está o homenzinho rústico, será que ele já tirou a faca do cós da calça?”. Se as pessoas soubessem um terço da história de Zezinho, elas se surpreenderiam. Não, não vou dizer que ele se formou em Harvard e é amigo pessoal de Noam Chonsky. (Suponho que ele deve ter sido barrado na porta do maternal com uma garrafa de Montilla.) Eu sei que ele tem menos de sete dentes na boca, talvez menos de quatro, sei que ele é alcoólatra desde os sete anos de idade, talvez antes dos sete meses, sei que ele mija nas calças e não liga pra isso, talvez ele beba o próprio mijo e não esteja nem aí, sei que ele se veste como o Velho do livro O Velho e o Mar, talvez sua vestimenta seja mais parecida com a de Nô, personagem interpretado por Carlos Riccelli, na mini-série Riacho Doce, sei que, quando olha-se pra ele, parece que ele esconde uma faca no cós da calça, talvez ele guarde, no mínimo, um cortador de unhas no cós da calça (não, ele não é do tipo que guarda um cortador de unhas no cós da calça, nem na nécessaire, ele não é do tipo que tem nécessaire nem que usa cortador de unhas, a unha dele é grande, amarela e suja), mas o que sei, e vocês não sabem, afinal, vi com os meus próprios olhos, em mais de uma ocasião para ser específico, é que ele tem uma carteira no bolso do “farrapo” que ele chama de calça e para sua surpresa, não para a minha, a carteira está cheia de notas de cem reis. “Oh, o que ele faz da vida?”. Eu digo para você: ele é babá. Um bem-sucedido babá homem, por sinal. De um menininho loiro. A família não tem o que reclamar dos serviços prestados por ele... Mas aí o segurança não tomou nenhuma atitude. Ficou parado. Foi como se ele concordasse com tudo que tinha acontecido. Lógico que não fui perguntar nada para ele. S ainda não havia voltado. Nós estávamos parados, testemunhando o enxame patético que Claudete Troiano estava fazendo. A bonita estava envergonhada, encolhida num canto, torcendo para aquela gralha calar a boca. Zezinho estava dançando... com um homem. Estava dançando com o Wellington. O Wellington foi com a gente. O Wellington é da estirpe que trocaria uma orgia com modelos suecas para ficar dando comida na boca de leprosos na Cracolândia. Ele não causaria nenhum espanto às pessoas com as quais convive se dissesse que casaria com uma anã filipina. Nem se dissesse que casaria com um jogador de basquete da seleção de Uganda. Nem se dissesse que casaria com um papagaio poliglota. Nem se dissesse, naquele momento, a plenos pulmões, ao som do infame Molejão, que casaria com Zezinho. Em suma, ele é completamente louco. Mas um louco bacana. Um louco impoluto. Sem preocupações fúteis, sem amargura e sem sarcasmos gratuitos. Weliington é como um labrador porcalhão, e estava dançando, às gargalhadas, com Zezinho. Ambos abraçados e felizes por dividir aquele momento bem brasileiro... Alguém de bom coração, ao observar a cena, diria se tratar de uma “ação entre amigos”. Alguém com um pouco de aspereza no coração diria se tratar de uma “aberração entre amigos”. Ambos abraçados e felizes por dividir aquele momento radiante... enquanto o bicho pegava na pista. Três caras, que nunca viram aquela vaca louca na vida, apareceram querendo defender Claudete Troiano. Caras desse tipo são identificados por gente do nosso tipo como “Justiceiros Oportunistas”. Eles aparecem em brigas de trânsito, em filas de supermercado, em filas de banco, em filas nas lojas Hering na época de Natal, em qualquer entrevero que haja mulheres “aceitáveis” (Claudete Troiano era inaceitável em todos os sentidos) envolvidas para defendê-las e ver se depois, se tudo correr bem, conseguem comê-las. Eles estavam em maior número do que a quantidade de dentes na boca do Zezinho. Porém, para infelicidade deles, nós estávamos em... Quinze. Isso sem contar com o S. Gordos, magros, altos, mais baixos do que baixos, imberbes, pirados, pacifistas, barbudos e um homem babá que, detalhe, lutava capoeira. Antes da confusão, encontramos dois companheiros que não víamos há algum tempo porque estavam... presos. Eles estavam acompanhados por mais sete caras e juntos formavam uma turminha formidável conhecida como a “Galera da Madeira”. Galera da Madeira porque eles espancavam a porretadas quem ousasse encher o saco deles. Antes de nos despedirmos, eles disseram: “Qualquer problema, é nós!”. Portanto, os Justiceiros Oportunistas estavam estratosfericamente arrombados! De Justiceiros Oportunistas, transformaram-se em Justiceiros Oportunistas. Quando eles perceberam a cagada que tinham cometido ao se envolverem em uma briga que não dizia respeito a eles, já era tarde demais. Nós os espancamos até a morte. Enquanto a caixa de som ribombava Alceu Valença, deixamos Zezinho mijar álcool puro sobre eles, depois tacar fogo, depois ver a fogueira alcançar o teto da balada enquanto a multidão vinha correndo para ver o que acontecia, chamar a Galera da Madeira, pedir com carinho para que a Galera da Madeira matasse a porretadas o DJ (que por sinal chamava-se Cabral) que só rolava merda, roubar um violão da banda de pop rock que tocava no outro ambiente, mandar o pessoal todo sentar no chão, dar o violão para o S tocar (depois de o Daniel dar uma afinada), para no final cantarmos todos juntos Mr. Jones, do Counting Crows, ao mesmo tempo em que Zezinho e Wellington faziam a dança de encerramento de Dirty Dancing. Fim. Agora, sem afetações, delírios e digressões, o que realmente aconteceu foi que eles deram sorte. Muita sorte. Sorte por sermos pacíficos. Sorte por ser apenas o começo da balada e todos estarmos “quase” sóbrios: quase = Zezinho. Sorte por nosso amigo Verinha não ter comparecido. (Nome: Alexandre; Apelido: Verinha; Segunda Personalidade: Michael Douglas em Um Dia de Fúria.) Sorte por sermos de boa família, cultivarmos sonhos, ótimos empregos, belas mulheres, várias viagens, encontrar o amor, oficializar o amor, gerar vidas e ter a chance de dizer: “Ai, que coisa boa”. Sorte por sermos de boa família, cultivarmos sonhos, ótimos empregos, belas mulheres, várias viagens, encontrar o amor, oficializar o amor, gerar vidas e ainda não nos darmos conta que os sonhos podem nunca se realizar, que os empregos são uma merda, que as mulheres, em sua maioria, são todas umas vadias, que as bostas dos empregos só propiciam viagens decepcionantes, que a espera do amor eleva o stress, dá barriga, encareca o que era cabeludo, e quando o amor chega, à beira do abismo do desespero irreversível, aceita qualquer coisa, uma Claudete Troiano em torno dos seus braços que, com o passar do tempo, dificilmente conseguirão fechar em torno daquele trambolho estridente, as vidas geradas serão mal-agradecidas ao longo dos anos, a filhinha linda, que sentava no seu colo com o sorriso mais belo e cativante que Deus foi capaz de criar, chegará ao ponto de sentar no colo de qualquer caminhoneiro cocainômano entupido de Viagra falsificado; o mesmo Deus que um dia lhe encheu de alegria, será o mesmo que o impelirá a gritar, longe de casa, numa puta chuva, de cuecão borrado na parte de trás, depois da primeira crise de Mal de Alzheimer: “DEUUUSSSS, QUE PORRA É ESSA?”. Mas naquele dia não tínhamos consciência da parte amarga desse teatro do bem e do mal. Então deixamos quieto. Claudete Troiano seguiu o seu caminho infeliz. Os Justiceiros Oportunistas, ou melhor, os Justiceiros Oportunistas, foram atrás de novas oportunidades menos problemáticas. Zezinho foi atrás de uma pilastra para dar uma mijada. Wellington foi atrás de uma chihuahua para pedi-la em casamento. S foi atrás de uma nova xoxota que desse menos trabalho. A bonita foi atrás de uma piroca que desse menos trabalho. Nós seguimos nossos caminhos cheios de oportunidades torcendo para que não cruzássemos o caminho cheio de infelicidade de Claudete Troiano.

Outra mina que merece tomar umas bolachas é a irmã de Maria Bethânia (familinha filha da puta): Caetano Veloso.
Mas esse combate ficará para o próximo round de: Por quê, em casos excepcionais, bater em mulher pode ser benéfico à sociedade!


(Fotografia: Mr. Arno Palumbo.)