“Ainda continuo a saber o que sabia enquanto estava aqui.”
Trecho tirado do sublime livro de epitáfios de Arno Palumbo – Só morro de Aids, editora Vintage Cranco.
Eu sempre sonhei em conhecer Buenos Aires.
Desde o dia em que Maradona deixou Dunga para trás e rolou a bola para Caniggia driblar Taffarel e eliminar o Brasil na Copa de 90, a nitidez mais remota de episódios tristes da minha memória remonta a este domingo ensolarado no qual toda a família se reuniu na casa do meu avô gigolô para, 100 minutos depois, comer em silêncio. Foi a última vez em que vi o meu pai sofrer com qualquer coisa relacionada a futebol. Foi a primeira de prováveis infinitas ocasiões em que vi o meu pai amaldiçoar o Brasil.
No mesmo ano, o meu pai morreu.
Mentira.
No mesmo ano, fiz amizade com um menino chamado Nicolas, que era o único brasileiro de uma família argentina. A irmã mais velha de Nicolas, Alice, foi a primeira mulher que reconheci como bonita (obrigado, pau duro, pela informação) que vi na minha vida e o primeiro indício do fascínio que as argentinas descendentes de ingleses provocariam em mim.
Catorze anos depois, o amigo mais gordo que conheci até agora, Rui, que fez parte da minha classe na faculdade, me apresentou a melhor banda de ska que já ouvi até então (que, por sinal, é natural de Buenos Aires): Satélite Kingston.
No mês de novembro do ano seguinte, o craque argentino Carlitos Tevez marcou três na inesquecível vitória de 7x1 do Corinthians pra cima do Santos. Foi a primeira e última vez que achei um homem bonito.
Eu tinha que conhecer Buenos Aires.
Dois anos depois, eu e o meu amigo “zen” Verinha fomos ao show do Satélite Kingston, em São Paulo, e ele, que nunca havia escutado, gritou, sóbrio e suado: “Esse é o meu tipo de carnaval!”. Todo mundo que conhece o Verinha sabe que ele não é nada carnavalesco.
Tudo o que não veremos durará para sempre. Os lugares para os quais jamais iremos serão para sempre o nosso pensamento.
Conhecer pode ser decepcionante.
Eu conheci Buenos Aires no começo deste ano - e o lugar me surpreendeu ainda mais que a surpresa que desejava que me surpreendesse.
Buenos Aires é maravilhosa.
Linda, viva, colorida, arborizada, charmosa e barata.
Entretanto, apesar de tudo, tenho uma reclamação a fazer.
O único fator realmente lamentável de Buenos Aires se deve ao excessivo número de turistas brasileiros. “Oh, e você é o quê?” Eu sou brasileiro, a maioria da minha família é brasileira, minha namorada é brasileira, o cachorro dela é brasileiro, os meus amigos são brasileiros, eu sempre vivi no Brasil, os melhores momentos da minha vida aconteceram aqui (os piores, sem dúvida alguma, também), mas não sou o tipo de brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira. Se alguém que estiver lendo esta merda for dessa cepa, na boa, você me envergonha. Eu sempre odiei o Gugu Liberato. Eu só não coloco o Gugu Liberato na minha lista de vadias que merecem apanhar porque sou incapaz de saber o que ele está produzindo agora. Mas a imagem mais vívida que tenho do programa dele, o extinto, graças a Jah, Viva a Noite (Viva!), além da lembrança da apresentação do Locomia e da matéria do Circo do Jaspion, é da reportagem (talvez a melhor coisa que ele tenha feito na vida) sobre o comportamento dos brasileiros na Disney World. Quando vejo algum “brasileiro com orgulho” furando a fila da balsa, automaticamente penso nesta reportagem. Pode ser gay, e sem dúvida denegridor, daqui para o resto da minha vida me sentir conectado a algo criado pelo Gugu e a sua equipe de baitolas, mas me sentiria muito mais pútrido em comparar a bela arquitetura de Buenos Aires com a do... Recife.
Vamos lá. A primeira regra do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira é achar que o Brasil é melhor em tudo. As nossas praias são as melhores, as nossas mulheres são as mais gostosas (ussxxss turisstassxxs têm que apaaanharrrr porque elesssxxs vêm aqui roubaarrr assxxs nossassxxxss mulheresssxxss), o nosso povo é o mais simpático, a nossa música é a mais rica, a nossa cerveja é a mais gelada, o nosso futebol é o mais fantástico, a nossa língua é a mais completa, a nossa democracia é a mais exemplar, as nossas festas são as mais divertidas, o nosso hino é o mais bonito, o nosso feijão é o mais saboroso, o nosso clima é o mais perfeito, os nossos brasileiros são melhores que os brasileiros dos outros, por fim, como o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira gosta de afirmar: “Nós somos os mais melhores em tudo!”.
Um dos lugares que mais gostei em Buenos Aires foi Puerto Madero – o bairro mais jovem da cidade portenha. Puerto Madero fica à parte do resto da cidade por ter um largo canal que dá acesso ao Estuário do Rio da Prata. Em torno do canal, que tem barcos que são abertos para visitação aos finais de semana, há dezenas de restaurantes luxuosos, bares descolados, residências bacanas e hotéis chiques que ficam situados em uma passarela que circunda todo o canal e que deve ter, no máximo, uns 3km de extensão, onde pude correr tranquilamente todas as manhãs, enquanto outras pessoas também corriam, ou faziam uma caminhada, ou andavam de patins (bicicletas e cachorros são proibidos de trafegar na área e todo mundo respeita) sob o constante céu azul, sem uma mísera nuvem, com o sol permanente e poderoso fielmente acompanhado por uma brisa deliciosa que tornava o verão argentino algo perto da perfeição. À noite, quando as luzes dos postes, dos prédios, dos restaurantes e dos barcos acendiam-se, e os restaurantes e os bares ficavam lotados, e os casais curtiam o final do dia sentados nos muitos bancos de praça dispostos ao longo de toda a passarela tomando sorvete, dividindo uma lata de cerveja ou só curtindo a presença um do outro, até o mais contumaz dos putanheiros diria que ali o clima romântico era contagioso.
Agora imagine o estado em que ficou a minha paciência ao testemunhar a seguinte cena: ao voltar da corrida, ir para o meu quarto e tomar banho, saí do quarto e fiquei à espera da chegada do elevador para poder descer ao refeitório e usufruir do café-da-manhã a que tinha direito. Enquanto esperava, uns cincos brasileiros, três meninas e dois caras, aproximaram-se de mim e também ficaram à espera do elevador. Nesse meio-tempo, eles começaram a conversar. E...
Homem: Eu quero conhecer esse tal de Puerto Madero.
Mulher: Nós fomos lá ontem à noite.
Homem: Falam que é muito bonito, o que você achou?
Mulher: Ah... não achei nada de mais, nós que estamos acostumados com o nordeste...
Nordeste?
Acostumados com o Nordeste?
COOOMMMM OOOO NOOORDEEESTE??????
OOOOO NOOORRRDEEESTE DO BRAAASSSILLL?
Acostumados com o quê?
Com cheiro de merda? Com gente comendo lixo? Com gente esfaqueada? Com cachorro com sarna? Com mendicância? Com gente cagando na rua? Com gente comendo a merda de quem caga na rua? Com corrupção? Com coronelismo? Com intoxicação alimentar? Com praia poluída? Com profissionais do sexo mirins? Com tráfico humano? Com bagunça travestida de alegria? Com sujeira travestida de espontaneidade? Com analfabetismo? Com prédios históricos corroídos pela urina do povo? Com estupro? Com roubo? Com latrocínio? Com parricídio? Com genocídio?
É claro que é muito mais cômodo apontar os erros nos outros do que reconhecê-los em nós mesmos. E também seria injusto da minha parte dizer que estas características acima são privilégio do nordeste brasileiro. Ontem mesmo, aqui no Guarujá, uma mendiga, que fala sozinha e que de vez em quando anda com os seios à mostra no meio da rua, deu uma bela cagada vespertina na praça que fica ao lado de onde trabalho. (Sorte que nenhuma criança é louca o bastante para brincar na praça onde essa maluca desova os seus petardos fedorentos. As praças da cidade são de responsabilidade da Terracom, e é notório que tudo em que a Terracom encosta vira, literalmente, lixo – sobretudo as praças.) Todo dia, ao correr na orla da praia os 12 a 15 km de costume, eu totalizo, a cada km percorrido, no mínimo, 10 “andarilhos” emporcalhando a cidade com os seus vícios, com as suas loucuras e com as suas ideologias estapafúrdias de andarilho. O andarilho idealista, sempre recendendo a pinga, prega que é um cidadão sem fronteiras que não faz parte do sistema. Um sistema para o qual não produz nada mas que depende da produção alheia para sustentar o seu sistema que acredita não fazer parte do sistema. Há quatro anos, duas meninas que cursaram jornalismo comigo apresentaram uma tese sobre a vida dos moradores de rua na Baixada Santista. Elas entrevistaram, durante dois anos de árduo trabalho, mais de trezentos moradores de rua e dezenas de funcionários de prefeituras e de ONGs da região que trabalham para entender e tentar sanar essa problemática social. O dado mais alarmante apontava que, dos mais de trezentos moradores de rua que contaram as suas histórias, apenas um gostaria de voltar para casa, os outros sentiam-se absolutamente confortáveis com o seu estilo de vida. Eles alegaram que essa vida lhes dava algo que não trocariam por nada: Liberdade. Liberdade para sujar as ruas, liberdade para ofender e agredir quem não contribuí com as suas liberdades, liberdade para vandalizar espaços públicos, liberdade para demonstrar as sua práticas sexuais em público: liberdade para impor as próprias liberdades em detrimento da liberdade dos outros.
Havia outra maluca que morava a três quadras da minha casa que tinha, sem brincadeira, mais de dez filhos. E a cada ocasião em que trombava com ela, ela estava grávida novamente – provavelmente de mais doze. A diferença de idade entre eles era indiscernível. Eles pareciam ter nascido todos ao mesmo tempo. Havia meninos e meninas, mas todos tinham a mesma cara, as mesmas pulgas, a mesma boca suja, a mesma falta de corte de cabelo, o mesmo tamanho e o mesmo pedido na ponta da língua quando tocavam a campainha da minha casa: (voz de quem tá sofrendo, de quem tá faminto) “Por favor, senhor(a), você pode me arranjar um biscoito?”. Óbvio que nós, eu e a minha mãe, o meu pai nem fudendo, dávamos um pacote de bolachas recheadas para eles. Os dez ou doze ou quinze nunca vinham juntos, eles dividiam-se em duplas. Quando abríamos a porta e entregávamos o pacote de bolacha, eles davam um obrigado dolorido e iam embora como que rastejando. Cinco segundos depois, caso abrisse a porta, colocasse o pescoço para fora e olhasse na direção deles, eles estavam travando esta amena conversa familiar: “Sai, sua putinha, a porra da bolacha é minha, sua vagabunda, vadia!”, “Para, seu putão, arrombado, a mãe falou pra gente dividir o biscoito”, “Vai toma no cu, sua vaca, vai pedi bolacha em outra casa, caralho, quando eu crescer, eu vou comprar um revólver e vou estourar a tua cabeça, piranha, filha da puta!”, “Tá xingando a mãe, hein, tá xingando a mãe, hein...” Eu e os meus amigos os apelidamos de Lango, em referência ao brinquedo produzido pela Estrela cujo nome era Lango Lango. Nós poderíamos ter chamado a ala feminina dos Lango de Lango Girl, mas como não dava para saber quem era menino ou menina naquela porra, a não ser quando um Lango Boy chamava outro Lango Boy de “puta piranha” (como os Langos nunca andavam sozinhos, os palavrões também nunca vinham sozinhos. Na tradição Lango, a vagabunda jamais era chamada somente de vagabunda, mas sim de VagabundaVadia, assim como viado era viadogay, cuzão era cuzãoarrombado, sapatão era sapatãolambexota...), todo mundo era Lango. Cinqüenta pacotes de Passatempo ou Bono depois, os Lango tocaram em casa e, naquele fatídico dia, infelizmente, não receberam bolacha, mas ganharam, da minha mãe, uma sacola com várias frutas e pães recheados com queijo e presunto. A partir desse dia, ela passou a dar aos Lango a mesma sacola repleta de frutas e sanduíches variados. Dez sacolas repletas de frutas e sanduíches variados depois, como sempre faz aos domingos, o meu pai foi cuidar do jardim da frente de casa. Imagine a sua surpresa e regozijo quando encontrou dezenas de frutas e sanduíches enterrados no jardim. Os mesmos alimentos que foram dados pela minha mãe com a melhor intenção do mundo e que acabaram enterrados por quem não estava realmente com fome!
“Nossa, cara, é Recife. Isso é Recife.” Escutei esta comparação esdrúxula em San Telmo, onde aos domingos rola a Feira de San Telmo – a maior feira de rua da América Latina. Não quis nem olhar para a “carinha” do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira que proferiu essa estúpida indiferença entupida de inveja patriótica para não ter pesadelos. O meu amigo Victor, que viajou tanto para o Recife quanto para Buenos Aires, resumiu a viagem à capital do estado de Pernambuco com a seguinte frase: “Seria melhor se o avião tivesse caído... na ida!”.
Outro comportamento que escancara o temperamento provinciano do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira está ligado à alimentação. Na mesma manhã em que ouvi “Nós que estamos acostumados com o nordeste...”, enquanto tomava o desjejum no refeitório, ouvi as seguintes indagações de um membro “do povo que canta e é feliz”: “Já percebeu que aqui não tem feijão? Uai, rapaz, eu sou mineiro, não consigo ficar sem o meu feijãozinho com farinha, e aqui é tudo carne com papas fritas, nunca vi uma coisa dessas, não tem feijão, onde já se viu...”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à França é: “Onde fica o Mc Donalds mais próximo?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à Espanha é: “Onde rola um quilo aqui por perto?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai aos Emirados Árabes é: “Por favor, Habibs?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à Índia é: “Onde fica a Igreja Universal?”.
A situação verídica que mais corrobora com os exemplos anteriores foi protagonizada por uma mina que já morou na minha rua. Adivinha qual foi a primeira coisa que ela fez quando foi a Nova Iorque? Ela foi ao... ao... ao... Brazilian Day. Na verdade, ela nunca havia ido a Nova Iorque, e foi a Nova Iorque especialmente para o Brazilian Day. “E aí, Flávia, me conta como foi Nova Iorque, visitou a Estátua da Liberdade, o Brooklyn, a Washington Square Park?” “Tá panguando, meu, tu num me conhece, tu acha que vou perde tempo com essas coisa, eu fui é pro Brazilian Day!” “Uau, que demais!”
O maior pecado do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira é que ele só tem orgulho de ser brasileiro quando sai do país. E as características de brasileiro que ele insiste em ostentar no exterior são as mais escrotas possíveis. Ou melhor, o brasileiro que faz questão de ostentar essas características é o mais escroto possível. Já os estrangeiros fazem o caminho inverso. Ao saírem do país de origem, eles se despem da própria cultura para imergir na cultura do país que estão visitando. Quando os gringos fazem aquele discurso batido, “yes, Brasil, caipirinha, bunda, samba e alegria”, é que eles estão imersos na cultura brasileira. “E o futebol?” O futebol não é brasileiro. “E a feijoada?” É portuguesa. “E o carnaval?” Apesar de o nosso carnaval ser único, ele foi importado da Europa. “E o Nelson Rubens?” O Nelson Rubens é brasileiro. Retificando: “Yes, Brasil, caipirinha, bunda, samba, alegria, Nelson Rubens e... Nelson Ned.”.
O que tem na mala do homem brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira quando sai do país:
- Camiseta cor de abóbora
- Regata-machão verde marca-texto
- Camiseta com a foto desfocada do filho(a) como estampa
- 3 Abadás
- Bandana vermelha de micareta ou de jogos universitários
- Croques amarelo
- Sapatênis
- Mizuno camaleão... falsificado
- Tatuagem do camaleão
- Papeti roxa
- Calça branca
- Calça da Diesel... falsificada rasgada com selvageria
- Brinco de brilhante “falsificado” nas duas orelhas
- Óculos da Okley... falsificado
- Cuecas Box da Hunter... falsificada
- Nike 5.000 molas... original. O brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira deixou de pagar todas as contas para comprar três pares.
- Bata usada nas últimas cinco viradas de ano-novo
- Óculos de grau com armação transparente ultra moderna comprado na 25 de março sem qualquer tipo de receita
- Máquina fotográfica digital comprada na Pagé Gallery
- Saruel branca
- 5 potes de gel fixador do mais barato
- Perfume Kaiak, da Natura
- Livro do Chico Xavier para fingir que lê no avião
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Mr. Catra, Charlie Brown Jr, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo e, claro, Djavan.
O que tem na mala da mulher brasileira culturalmente confortável com a cultura brasileira quando sai do país:
- Silicone
- Bunda
- Silicone na bunda
- Batom vermelho
- Batom prateado
- Batom com brilho
- Fio dental – mesmo que seja para ir à Bulgária no inverno
- Nenhum sutiã
- Perfume only xota
- Micropano de chão como microshorts
- Camisinhas “astutamente” violadas
- Passaporte falsificado
- Talvez, só talvez, só uma suposição, cocaína no interior do corpo
- Talvez, só talvez, só uma suposição, boa-noite cinderela
- Saruel branco
- Tudo com decotão
- Salto bem alto
-10 caixas de água oxigenada
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, do grupo Pixote, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo, Justin Bieber, Rihanna, Shakira, Madonna e, claro, Djavan.
As armas que o homem brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira leva quando sai do país:
- Camisa da Seleção Brasileira
- Outra camisa da Seleção Brasileira
- Camisa do Flamengo (o time do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira – sem o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, o Flamengo teria apenas três torcedores)
- Feijão carioca
- Feijão preto
- Farinha
- Bife chiclete
- Ovo estatelado
- O cheiro da coxinha de frango
- Gírias
-Risada estridente
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Mr. Catra, Charlie Brown Jr, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo e, claro, Djavan.
- Nextel emprestado
- Pelé
- Deus
- Jesus Cristo
- Jeová
- E, agora, Maomé
As armas que a mulher brasileira culturalmente confortável com a cultura brasileira leva quando sai do país:
- Silicone
- Bunda
- Silicone na bunda
- Samba na bunda
- Pé na bunda
- Mão na bunda
- Nariz na bunda
- Pica na bunda
- Buceta convidativa
- Buceta que sai entrando em qualquer lugar sem ser convidada
- Perfuma only xota
- Fio dental – mesmo que seja para ir à Bulgária no inverno
- Tudo com decotão
- Talvez, só talvez, só uma suposição, boa-noite cinderela
- Camisinhas “astutamente” violadas
- Passaporte falsificado
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, do grupo Pixote, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo, Justin Bieber, Rihanna, Shakira, Madonna e, claro, Djavan.
- Recordações da família, dos amigos, dos 25 amantes regulares e dos 63 irregulares para tentar arrefecer a dor da distância provocada por sua escolha de fazer um pé de meia, quem sabe até uma nova família, como prostituta na Bulgária
- Camisa da Seleção Brasileira
- Outra camisa da Seleção Brasileira
- Camisa do Flamengo (o time do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira – sem o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, o Flamengo teria apenas um torcedor e meio)
- Feijão carioca
- Feijão preto
- Farinha
- Bife chiclete
- Ovo estatelado
- O cheiro da coxinha de frango
- Gírias
-Risada estridente
- Nextel emprestado
- Pelé
- Madonna
- Deus
- Jesus Cristo
- Jeová
- E, agora, Maomé
O êxodo descomunal de brasileiros a Buenos Aires se deve, sobretudo, à valorização da nossa moeda frente ao peso. Os brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira estão cagando para a arquitetura, para a culinária, para os vinhos, para os belos parques, para as inúmeras livrarias e tampouco estão curiosos para conhecer minimamente a cultura dos “hermanos”. Eles querem é comprar – e barato. Buenos Aires é a nova Paraguai. A diferença crucial é que nós nunca nos sentimos intimidados pelos paraguaios. Por mais que achássemos o Paraguai uma merda, quando solicitavam a nossa impressão de Ciudad del Este, nós dizíamos, sem interesse aparente, “ah, legal, valeu a pena”, instantaneamente suprimindo da memória que o telefone Panasonic sem-fio de última geração era de fato um telefone “Panasoanic” sem-fio da pior geração com mau contato no cabo que parou de funcionar “misteriosamente” duas semanas depois. O que pega é que nunca houve um jogador de futebol paraguaio que tenha sido considerado o melhor do mundo. Lá no Paraguai, eles têm o Cerro Portenho. Em Buenos Aires, eles têm um “tal” de Boca Juniors. O “tal” Boca Juniors detêm mais glórias que qualquer time do Brasil. E esse fato dói bastante no coração do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, afinal, o nosso maior produto de exportação, ainda e cada vez mais a duras penas, é o futebol, cujo símbolo esférico é fabricado pelas mãos de crianças de países subdesenvolvidos longínquos que só sabem o que é o Brasil por conta, possivelmente, da existência de um ser igualmente esférico: Ronaldo Fenômeno. O mesmo Ronaldo Fenômeno que foi chutado pela torcida “organizada” cuja escola de samba nunca ganha porra nenhuma e incorpora “fielmente” o espírito do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira (não me leve a mal, eu sou corintiano, só não sou imbecil). Não que não tenhamos ídolos, só não geramos pessoas em número suficiente capazes de reconhecer os feitos desses ídolos. Só fabricamos pessoas capazes de reconhecer ídolos fabricados por profissionais fabricados que na atual conjuntura patética da nossa sociedade não são considerados fracassados. E quando raramente reconhecemos esses ídolos legítimos, essas pessoas fazem o impossível para colocá-los em situações que os tornam irreconhecíveis, lamentavelmente para aqueles brasileiros que não são culturalmente confortáveis com a cultura brasileira: nós, que sabemos quem é Millôr Fernandes; nós, que sabemos quem foi Tarso de Castro; nós, que sabemos quem foi José Agrippino de Paula; nós, que sabemos quem é Ignácio de Loyola Brandão; nós, que nos emocionamos quando Ronaldo Fenômeno pendurou as chuteiras. De todo modo, parafraseando o seu Osmar, médico e pai de um grande amigo meu, “o futebol é a única manifestação brasileira capaz de suspender, por 90 minutos em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo, a afluência de hipocondríacos que atulha os nossos hospitais”.
Portanto, o maldito futebol (veja: que tanto amo) é e sempre será o fiel da balança nessa disputa infeliz que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira estimula há mais de 100 anos. Entretanto, contra todos os prognósticos servidos em doses cavalares como alimento de guerra pelos patronos tacanhos da nossa república varonil desde a tenra infância, os argentinos, nas extensas e edificantes discussões que tive principalmente com a classe proletária de Buenos Aires (basicamente, taxistas, garçons e recepcionistas do hotel), fazem quase de tudo para proteger o Brasil e, por conseguinte, os brasileiros. Como disse alguém que não lembro quem: “Os argentinos odeiam amar os brasileiros, os brasileiros amam odiar os argentinos”. Quando disse que o Brasil é um país caótico repleto de corrupção e violência e, em contrapartida, Buenos Aires não sofria tanto com esses infortúnios, eles lamentavam “não, não, o Brasil é muito grande, Argentina é muito pequena perto do Brasil, aqui os problemas são menores, Buenos Aires é menor que São Paulo, os problemas de um lugar são correspondentes com o seu tamanho”. Quando disse que a pequena Buenos Aires tinha mais livrarias que o gigante Brasil (vergonhoso, né? É a mais pura verdade), eles não acreditavam, “não, não acredito, é verdade? Não, deve ter alguma coisa errada, como? Buenos Aires tem mais livrarias que todo o Brasil? Não, não é possível, como pode...”. Quando disse que o Brasil, nos últimos dez anos, é o país que mais comete homicídios com armas de fogo no mundo, eles tentavam alguma coisa, mas a força para puxar a corda de resgate da moral brasileira começava a se exaurir vertiginosamente, “meu Deus, que pena, é assim mesmo?”. Quando disse que 75% da população brasileira são de analfabetos funcionais, ou seja, sabem ler e escrever mas são incapazes de interpretar um texto ou resolver um problema de matemática... quando disse que os nossos parlamentares aumentaram o próprio salário em 62%... quando disse que o deputado mais votado na última eleição era analfabeto legítimo e um péssimo artista legítimo... quando disse que 52% do faturamento de qualquer empresa no Brasil deve ser repassado aos cofres públicos... quando disse que havia no Brasil pessoas que desviavam dinheiro destinados a creches e entidades que cuidavam de crianças abandonadas com paralisia cerebral... quando disse que os motoqueiros brasileiros criaram um sistema unilateral de trânsito no qual o motoqueiro é sempre a vítima em qualquer incidente em que se meter... quando disse que o Pelé, que os brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira fazem tanta questão de dizer que é melhor que o Maradona, era tratado como um idiota fanfarrão tanto pela imprensa quanto pela opinião pública... porém, quando disse que há um certo grupo de brasileiros que afirmam que a arquitetura do Recife é igual a de Buenos Aires e que Puerto Madero é insignificante em comparação ao “bem cuidado” nordeste brasileiro, eles ficaram putos da vida, “más que boludo, más que boludo, maricón, hirro de la puta, traga las madres desses boludos...
A prova contundente de que o Brasil é um país de merda, suficiente para encerrar qualquer discussão com qualquer horda de brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira, é que, atualmente, OS NOSSOS MAIORES POPSTARS SÃO PADRES!
Trecho tirado do sublime livro de epitáfios de Arno Palumbo – Só morro de Aids, editora Vintage Cranco.
Eu sempre sonhei em conhecer Buenos Aires.
Desde o dia em que Maradona deixou Dunga para trás e rolou a bola para Caniggia driblar Taffarel e eliminar o Brasil na Copa de 90, a nitidez mais remota de episódios tristes da minha memória remonta a este domingo ensolarado no qual toda a família se reuniu na casa do meu avô gigolô para, 100 minutos depois, comer em silêncio. Foi a última vez em que vi o meu pai sofrer com qualquer coisa relacionada a futebol. Foi a primeira de prováveis infinitas ocasiões em que vi o meu pai amaldiçoar o Brasil.
No mesmo ano, o meu pai morreu.
Mentira.
No mesmo ano, fiz amizade com um menino chamado Nicolas, que era o único brasileiro de uma família argentina. A irmã mais velha de Nicolas, Alice, foi a primeira mulher que reconheci como bonita (obrigado, pau duro, pela informação) que vi na minha vida e o primeiro indício do fascínio que as argentinas descendentes de ingleses provocariam em mim.
Catorze anos depois, o amigo mais gordo que conheci até agora, Rui, que fez parte da minha classe na faculdade, me apresentou a melhor banda de ska que já ouvi até então (que, por sinal, é natural de Buenos Aires): Satélite Kingston.
No mês de novembro do ano seguinte, o craque argentino Carlitos Tevez marcou três na inesquecível vitória de 7x1 do Corinthians pra cima do Santos. Foi a primeira e última vez que achei um homem bonito.
Eu tinha que conhecer Buenos Aires.
Dois anos depois, eu e o meu amigo “zen” Verinha fomos ao show do Satélite Kingston, em São Paulo, e ele, que nunca havia escutado, gritou, sóbrio e suado: “Esse é o meu tipo de carnaval!”. Todo mundo que conhece o Verinha sabe que ele não é nada carnavalesco.
Tudo o que não veremos durará para sempre. Os lugares para os quais jamais iremos serão para sempre o nosso pensamento.
Conhecer pode ser decepcionante.
Eu conheci Buenos Aires no começo deste ano - e o lugar me surpreendeu ainda mais que a surpresa que desejava que me surpreendesse.
Buenos Aires é maravilhosa.
Linda, viva, colorida, arborizada, charmosa e barata.
Entretanto, apesar de tudo, tenho uma reclamação a fazer.
O único fator realmente lamentável de Buenos Aires se deve ao excessivo número de turistas brasileiros. “Oh, e você é o quê?” Eu sou brasileiro, a maioria da minha família é brasileira, minha namorada é brasileira, o cachorro dela é brasileiro, os meus amigos são brasileiros, eu sempre vivi no Brasil, os melhores momentos da minha vida aconteceram aqui (os piores, sem dúvida alguma, também), mas não sou o tipo de brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira. Se alguém que estiver lendo esta merda for dessa cepa, na boa, você me envergonha. Eu sempre odiei o Gugu Liberato. Eu só não coloco o Gugu Liberato na minha lista de vadias que merecem apanhar porque sou incapaz de saber o que ele está produzindo agora. Mas a imagem mais vívida que tenho do programa dele, o extinto, graças a Jah, Viva a Noite (Viva!), além da lembrança da apresentação do Locomia e da matéria do Circo do Jaspion, é da reportagem (talvez a melhor coisa que ele tenha feito na vida) sobre o comportamento dos brasileiros na Disney World. Quando vejo algum “brasileiro com orgulho” furando a fila da balsa, automaticamente penso nesta reportagem. Pode ser gay, e sem dúvida denegridor, daqui para o resto da minha vida me sentir conectado a algo criado pelo Gugu e a sua equipe de baitolas, mas me sentiria muito mais pútrido em comparar a bela arquitetura de Buenos Aires com a do... Recife.
Vamos lá. A primeira regra do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira é achar que o Brasil é melhor em tudo. As nossas praias são as melhores, as nossas mulheres são as mais gostosas (ussxxss turisstassxxs têm que apaaanharrrr porque elesssxxs vêm aqui roubaarrr assxxs nossassxxxss mulheresssxxss), o nosso povo é o mais simpático, a nossa música é a mais rica, a nossa cerveja é a mais gelada, o nosso futebol é o mais fantástico, a nossa língua é a mais completa, a nossa democracia é a mais exemplar, as nossas festas são as mais divertidas, o nosso hino é o mais bonito, o nosso feijão é o mais saboroso, o nosso clima é o mais perfeito, os nossos brasileiros são melhores que os brasileiros dos outros, por fim, como o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira gosta de afirmar: “Nós somos os mais melhores em tudo!”.
Um dos lugares que mais gostei em Buenos Aires foi Puerto Madero – o bairro mais jovem da cidade portenha. Puerto Madero fica à parte do resto da cidade por ter um largo canal que dá acesso ao Estuário do Rio da Prata. Em torno do canal, que tem barcos que são abertos para visitação aos finais de semana, há dezenas de restaurantes luxuosos, bares descolados, residências bacanas e hotéis chiques que ficam situados em uma passarela que circunda todo o canal e que deve ter, no máximo, uns 3km de extensão, onde pude correr tranquilamente todas as manhãs, enquanto outras pessoas também corriam, ou faziam uma caminhada, ou andavam de patins (bicicletas e cachorros são proibidos de trafegar na área e todo mundo respeita) sob o constante céu azul, sem uma mísera nuvem, com o sol permanente e poderoso fielmente acompanhado por uma brisa deliciosa que tornava o verão argentino algo perto da perfeição. À noite, quando as luzes dos postes, dos prédios, dos restaurantes e dos barcos acendiam-se, e os restaurantes e os bares ficavam lotados, e os casais curtiam o final do dia sentados nos muitos bancos de praça dispostos ao longo de toda a passarela tomando sorvete, dividindo uma lata de cerveja ou só curtindo a presença um do outro, até o mais contumaz dos putanheiros diria que ali o clima romântico era contagioso.
Agora imagine o estado em que ficou a minha paciência ao testemunhar a seguinte cena: ao voltar da corrida, ir para o meu quarto e tomar banho, saí do quarto e fiquei à espera da chegada do elevador para poder descer ao refeitório e usufruir do café-da-manhã a que tinha direito. Enquanto esperava, uns cincos brasileiros, três meninas e dois caras, aproximaram-se de mim e também ficaram à espera do elevador. Nesse meio-tempo, eles começaram a conversar. E...
Homem: Eu quero conhecer esse tal de Puerto Madero.
Mulher: Nós fomos lá ontem à noite.
Homem: Falam que é muito bonito, o que você achou?
Mulher: Ah... não achei nada de mais, nós que estamos acostumados com o nordeste...
Nordeste?
Acostumados com o Nordeste?
COOOMMMM OOOO NOOORDEEESTE??????
OOOOO NOOORRRDEEESTE DO BRAAASSSILLL?
Acostumados com o quê?
Com cheiro de merda? Com gente comendo lixo? Com gente esfaqueada? Com cachorro com sarna? Com mendicância? Com gente cagando na rua? Com gente comendo a merda de quem caga na rua? Com corrupção? Com coronelismo? Com intoxicação alimentar? Com praia poluída? Com profissionais do sexo mirins? Com tráfico humano? Com bagunça travestida de alegria? Com sujeira travestida de espontaneidade? Com analfabetismo? Com prédios históricos corroídos pela urina do povo? Com estupro? Com roubo? Com latrocínio? Com parricídio? Com genocídio?
É claro que é muito mais cômodo apontar os erros nos outros do que reconhecê-los em nós mesmos. E também seria injusto da minha parte dizer que estas características acima são privilégio do nordeste brasileiro. Ontem mesmo, aqui no Guarujá, uma mendiga, que fala sozinha e que de vez em quando anda com os seios à mostra no meio da rua, deu uma bela cagada vespertina na praça que fica ao lado de onde trabalho. (Sorte que nenhuma criança é louca o bastante para brincar na praça onde essa maluca desova os seus petardos fedorentos. As praças da cidade são de responsabilidade da Terracom, e é notório que tudo em que a Terracom encosta vira, literalmente, lixo – sobretudo as praças.) Todo dia, ao correr na orla da praia os 12 a 15 km de costume, eu totalizo, a cada km percorrido, no mínimo, 10 “andarilhos” emporcalhando a cidade com os seus vícios, com as suas loucuras e com as suas ideologias estapafúrdias de andarilho. O andarilho idealista, sempre recendendo a pinga, prega que é um cidadão sem fronteiras que não faz parte do sistema. Um sistema para o qual não produz nada mas que depende da produção alheia para sustentar o seu sistema que acredita não fazer parte do sistema. Há quatro anos, duas meninas que cursaram jornalismo comigo apresentaram uma tese sobre a vida dos moradores de rua na Baixada Santista. Elas entrevistaram, durante dois anos de árduo trabalho, mais de trezentos moradores de rua e dezenas de funcionários de prefeituras e de ONGs da região que trabalham para entender e tentar sanar essa problemática social. O dado mais alarmante apontava que, dos mais de trezentos moradores de rua que contaram as suas histórias, apenas um gostaria de voltar para casa, os outros sentiam-se absolutamente confortáveis com o seu estilo de vida. Eles alegaram que essa vida lhes dava algo que não trocariam por nada: Liberdade. Liberdade para sujar as ruas, liberdade para ofender e agredir quem não contribuí com as suas liberdades, liberdade para vandalizar espaços públicos, liberdade para demonstrar as sua práticas sexuais em público: liberdade para impor as próprias liberdades em detrimento da liberdade dos outros.
Havia outra maluca que morava a três quadras da minha casa que tinha, sem brincadeira, mais de dez filhos. E a cada ocasião em que trombava com ela, ela estava grávida novamente – provavelmente de mais doze. A diferença de idade entre eles era indiscernível. Eles pareciam ter nascido todos ao mesmo tempo. Havia meninos e meninas, mas todos tinham a mesma cara, as mesmas pulgas, a mesma boca suja, a mesma falta de corte de cabelo, o mesmo tamanho e o mesmo pedido na ponta da língua quando tocavam a campainha da minha casa: (voz de quem tá sofrendo, de quem tá faminto) “Por favor, senhor(a), você pode me arranjar um biscoito?”. Óbvio que nós, eu e a minha mãe, o meu pai nem fudendo, dávamos um pacote de bolachas recheadas para eles. Os dez ou doze ou quinze nunca vinham juntos, eles dividiam-se em duplas. Quando abríamos a porta e entregávamos o pacote de bolacha, eles davam um obrigado dolorido e iam embora como que rastejando. Cinco segundos depois, caso abrisse a porta, colocasse o pescoço para fora e olhasse na direção deles, eles estavam travando esta amena conversa familiar: “Sai, sua putinha, a porra da bolacha é minha, sua vagabunda, vadia!”, “Para, seu putão, arrombado, a mãe falou pra gente dividir o biscoito”, “Vai toma no cu, sua vaca, vai pedi bolacha em outra casa, caralho, quando eu crescer, eu vou comprar um revólver e vou estourar a tua cabeça, piranha, filha da puta!”, “Tá xingando a mãe, hein, tá xingando a mãe, hein...” Eu e os meus amigos os apelidamos de Lango, em referência ao brinquedo produzido pela Estrela cujo nome era Lango Lango. Nós poderíamos ter chamado a ala feminina dos Lango de Lango Girl, mas como não dava para saber quem era menino ou menina naquela porra, a não ser quando um Lango Boy chamava outro Lango Boy de “puta piranha” (como os Langos nunca andavam sozinhos, os palavrões também nunca vinham sozinhos. Na tradição Lango, a vagabunda jamais era chamada somente de vagabunda, mas sim de VagabundaVadia, assim como viado era viadogay, cuzão era cuzãoarrombado, sapatão era sapatãolambexota...), todo mundo era Lango. Cinqüenta pacotes de Passatempo ou Bono depois, os Lango tocaram em casa e, naquele fatídico dia, infelizmente, não receberam bolacha, mas ganharam, da minha mãe, uma sacola com várias frutas e pães recheados com queijo e presunto. A partir desse dia, ela passou a dar aos Lango a mesma sacola repleta de frutas e sanduíches variados. Dez sacolas repletas de frutas e sanduíches variados depois, como sempre faz aos domingos, o meu pai foi cuidar do jardim da frente de casa. Imagine a sua surpresa e regozijo quando encontrou dezenas de frutas e sanduíches enterrados no jardim. Os mesmos alimentos que foram dados pela minha mãe com a melhor intenção do mundo e que acabaram enterrados por quem não estava realmente com fome!
“Nossa, cara, é Recife. Isso é Recife.” Escutei esta comparação esdrúxula em San Telmo, onde aos domingos rola a Feira de San Telmo – a maior feira de rua da América Latina. Não quis nem olhar para a “carinha” do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira que proferiu essa estúpida indiferença entupida de inveja patriótica para não ter pesadelos. O meu amigo Victor, que viajou tanto para o Recife quanto para Buenos Aires, resumiu a viagem à capital do estado de Pernambuco com a seguinte frase: “Seria melhor se o avião tivesse caído... na ida!”.
Outro comportamento que escancara o temperamento provinciano do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira está ligado à alimentação. Na mesma manhã em que ouvi “Nós que estamos acostumados com o nordeste...”, enquanto tomava o desjejum no refeitório, ouvi as seguintes indagações de um membro “do povo que canta e é feliz”: “Já percebeu que aqui não tem feijão? Uai, rapaz, eu sou mineiro, não consigo ficar sem o meu feijãozinho com farinha, e aqui é tudo carne com papas fritas, nunca vi uma coisa dessas, não tem feijão, onde já se viu...”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à França é: “Onde fica o Mc Donalds mais próximo?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à Espanha é: “Onde rola um quilo aqui por perto?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai aos Emirados Árabes é: “Por favor, Habibs?”. A primeira pergunta que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira faz quando vai à Índia é: “Onde fica a Igreja Universal?”.
A situação verídica que mais corrobora com os exemplos anteriores foi protagonizada por uma mina que já morou na minha rua. Adivinha qual foi a primeira coisa que ela fez quando foi a Nova Iorque? Ela foi ao... ao... ao... Brazilian Day. Na verdade, ela nunca havia ido a Nova Iorque, e foi a Nova Iorque especialmente para o Brazilian Day. “E aí, Flávia, me conta como foi Nova Iorque, visitou a Estátua da Liberdade, o Brooklyn, a Washington Square Park?” “Tá panguando, meu, tu num me conhece, tu acha que vou perde tempo com essas coisa, eu fui é pro Brazilian Day!” “Uau, que demais!”
O maior pecado do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira é que ele só tem orgulho de ser brasileiro quando sai do país. E as características de brasileiro que ele insiste em ostentar no exterior são as mais escrotas possíveis. Ou melhor, o brasileiro que faz questão de ostentar essas características é o mais escroto possível. Já os estrangeiros fazem o caminho inverso. Ao saírem do país de origem, eles se despem da própria cultura para imergir na cultura do país que estão visitando. Quando os gringos fazem aquele discurso batido, “yes, Brasil, caipirinha, bunda, samba e alegria”, é que eles estão imersos na cultura brasileira. “E o futebol?” O futebol não é brasileiro. “E a feijoada?” É portuguesa. “E o carnaval?” Apesar de o nosso carnaval ser único, ele foi importado da Europa. “E o Nelson Rubens?” O Nelson Rubens é brasileiro. Retificando: “Yes, Brasil, caipirinha, bunda, samba, alegria, Nelson Rubens e... Nelson Ned.”.
O que tem na mala do homem brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira quando sai do país:
- Camiseta cor de abóbora
- Regata-machão verde marca-texto
- Camiseta com a foto desfocada do filho(a) como estampa
- 3 Abadás
- Bandana vermelha de micareta ou de jogos universitários
- Croques amarelo
- Sapatênis
- Mizuno camaleão... falsificado
- Tatuagem do camaleão
- Papeti roxa
- Calça branca
- Calça da Diesel... falsificada rasgada com selvageria
- Brinco de brilhante “falsificado” nas duas orelhas
- Óculos da Okley... falsificado
- Cuecas Box da Hunter... falsificada
- Nike 5.000 molas... original. O brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira deixou de pagar todas as contas para comprar três pares.
- Bata usada nas últimas cinco viradas de ano-novo
- Óculos de grau com armação transparente ultra moderna comprado na 25 de março sem qualquer tipo de receita
- Máquina fotográfica digital comprada na Pagé Gallery
- Saruel branca
- 5 potes de gel fixador do mais barato
- Perfume Kaiak, da Natura
- Livro do Chico Xavier para fingir que lê no avião
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Mr. Catra, Charlie Brown Jr, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo e, claro, Djavan.
O que tem na mala da mulher brasileira culturalmente confortável com a cultura brasileira quando sai do país:
- Silicone
- Bunda
- Silicone na bunda
- Batom vermelho
- Batom prateado
- Batom com brilho
- Fio dental – mesmo que seja para ir à Bulgária no inverno
- Nenhum sutiã
- Perfume only xota
- Micropano de chão como microshorts
- Camisinhas “astutamente” violadas
- Passaporte falsificado
- Talvez, só talvez, só uma suposição, cocaína no interior do corpo
- Talvez, só talvez, só uma suposição, boa-noite cinderela
- Saruel branco
- Tudo com decotão
- Salto bem alto
-10 caixas de água oxigenada
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, do grupo Pixote, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo, Justin Bieber, Rihanna, Shakira, Madonna e, claro, Djavan.
As armas que o homem brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira leva quando sai do país:
- Camisa da Seleção Brasileira
- Outra camisa da Seleção Brasileira
- Camisa do Flamengo (o time do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira – sem o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, o Flamengo teria apenas três torcedores)
- Feijão carioca
- Feijão preto
- Farinha
- Bife chiclete
- Ovo estatelado
- O cheiro da coxinha de frango
- Gírias
-Risada estridente
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Mr. Catra, Charlie Brown Jr, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo e, claro, Djavan.
- Nextel emprestado
- Pelé
- Deus
- Jesus Cristo
- Jeová
- E, agora, Maomé
As armas que a mulher brasileira culturalmente confortável com a cultura brasileira leva quando sai do país:
- Silicone
- Bunda
- Silicone na bunda
- Samba na bunda
- Pé na bunda
- Mão na bunda
- Nariz na bunda
- Pica na bunda
- Buceta convidativa
- Buceta que sai entrando em qualquer lugar sem ser convidada
- Perfuma only xota
- Fio dental – mesmo que seja para ir à Bulgária no inverno
- Tudo com decotão
- Talvez, só talvez, só uma suposição, boa-noite cinderela
- Camisinhas “astutamente” violadas
- Passaporte falsificado
- Celular, sem fone de ouvido, com mp3 do Grupo Sensação, do grupo Pixote, de Maria Cecília e Rodolfo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ana Carolina, Roupa Nova ao vivo, Chiclete com Banana ao vivo, Justin Bieber, Rihanna, Shakira, Madonna e, claro, Djavan.
- Recordações da família, dos amigos, dos 25 amantes regulares e dos 63 irregulares para tentar arrefecer a dor da distância provocada por sua escolha de fazer um pé de meia, quem sabe até uma nova família, como prostituta na Bulgária
- Camisa da Seleção Brasileira
- Outra camisa da Seleção Brasileira
- Camisa do Flamengo (o time do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira – sem o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, o Flamengo teria apenas um torcedor e meio)
- Feijão carioca
- Feijão preto
- Farinha
- Bife chiclete
- Ovo estatelado
- O cheiro da coxinha de frango
- Gírias
-Risada estridente
- Nextel emprestado
- Pelé
- Madonna
- Deus
- Jesus Cristo
- Jeová
- E, agora, Maomé
O êxodo descomunal de brasileiros a Buenos Aires se deve, sobretudo, à valorização da nossa moeda frente ao peso. Os brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira estão cagando para a arquitetura, para a culinária, para os vinhos, para os belos parques, para as inúmeras livrarias e tampouco estão curiosos para conhecer minimamente a cultura dos “hermanos”. Eles querem é comprar – e barato. Buenos Aires é a nova Paraguai. A diferença crucial é que nós nunca nos sentimos intimidados pelos paraguaios. Por mais que achássemos o Paraguai uma merda, quando solicitavam a nossa impressão de Ciudad del Este, nós dizíamos, sem interesse aparente, “ah, legal, valeu a pena”, instantaneamente suprimindo da memória que o telefone Panasonic sem-fio de última geração era de fato um telefone “Panasoanic” sem-fio da pior geração com mau contato no cabo que parou de funcionar “misteriosamente” duas semanas depois. O que pega é que nunca houve um jogador de futebol paraguaio que tenha sido considerado o melhor do mundo. Lá no Paraguai, eles têm o Cerro Portenho. Em Buenos Aires, eles têm um “tal” de Boca Juniors. O “tal” Boca Juniors detêm mais glórias que qualquer time do Brasil. E esse fato dói bastante no coração do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira, afinal, o nosso maior produto de exportação, ainda e cada vez mais a duras penas, é o futebol, cujo símbolo esférico é fabricado pelas mãos de crianças de países subdesenvolvidos longínquos que só sabem o que é o Brasil por conta, possivelmente, da existência de um ser igualmente esférico: Ronaldo Fenômeno. O mesmo Ronaldo Fenômeno que foi chutado pela torcida “organizada” cuja escola de samba nunca ganha porra nenhuma e incorpora “fielmente” o espírito do brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira (não me leve a mal, eu sou corintiano, só não sou imbecil). Não que não tenhamos ídolos, só não geramos pessoas em número suficiente capazes de reconhecer os feitos desses ídolos. Só fabricamos pessoas capazes de reconhecer ídolos fabricados por profissionais fabricados que na atual conjuntura patética da nossa sociedade não são considerados fracassados. E quando raramente reconhecemos esses ídolos legítimos, essas pessoas fazem o impossível para colocá-los em situações que os tornam irreconhecíveis, lamentavelmente para aqueles brasileiros que não são culturalmente confortáveis com a cultura brasileira: nós, que sabemos quem é Millôr Fernandes; nós, que sabemos quem foi Tarso de Castro; nós, que sabemos quem foi José Agrippino de Paula; nós, que sabemos quem é Ignácio de Loyola Brandão; nós, que nos emocionamos quando Ronaldo Fenômeno pendurou as chuteiras. De todo modo, parafraseando o seu Osmar, médico e pai de um grande amigo meu, “o futebol é a única manifestação brasileira capaz de suspender, por 90 minutos em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo, a afluência de hipocondríacos que atulha os nossos hospitais”.
Portanto, o maldito futebol (veja: que tanto amo) é e sempre será o fiel da balança nessa disputa infeliz que o brasileiro culturalmente confortável com a cultura brasileira estimula há mais de 100 anos. Entretanto, contra todos os prognósticos servidos em doses cavalares como alimento de guerra pelos patronos tacanhos da nossa república varonil desde a tenra infância, os argentinos, nas extensas e edificantes discussões que tive principalmente com a classe proletária de Buenos Aires (basicamente, taxistas, garçons e recepcionistas do hotel), fazem quase de tudo para proteger o Brasil e, por conseguinte, os brasileiros. Como disse alguém que não lembro quem: “Os argentinos odeiam amar os brasileiros, os brasileiros amam odiar os argentinos”. Quando disse que o Brasil é um país caótico repleto de corrupção e violência e, em contrapartida, Buenos Aires não sofria tanto com esses infortúnios, eles lamentavam “não, não, o Brasil é muito grande, Argentina é muito pequena perto do Brasil, aqui os problemas são menores, Buenos Aires é menor que São Paulo, os problemas de um lugar são correspondentes com o seu tamanho”. Quando disse que a pequena Buenos Aires tinha mais livrarias que o gigante Brasil (vergonhoso, né? É a mais pura verdade), eles não acreditavam, “não, não acredito, é verdade? Não, deve ter alguma coisa errada, como? Buenos Aires tem mais livrarias que todo o Brasil? Não, não é possível, como pode...”. Quando disse que o Brasil, nos últimos dez anos, é o país que mais comete homicídios com armas de fogo no mundo, eles tentavam alguma coisa, mas a força para puxar a corda de resgate da moral brasileira começava a se exaurir vertiginosamente, “meu Deus, que pena, é assim mesmo?”. Quando disse que 75% da população brasileira são de analfabetos funcionais, ou seja, sabem ler e escrever mas são incapazes de interpretar um texto ou resolver um problema de matemática... quando disse que os nossos parlamentares aumentaram o próprio salário em 62%... quando disse que o deputado mais votado na última eleição era analfabeto legítimo e um péssimo artista legítimo... quando disse que 52% do faturamento de qualquer empresa no Brasil deve ser repassado aos cofres públicos... quando disse que havia no Brasil pessoas que desviavam dinheiro destinados a creches e entidades que cuidavam de crianças abandonadas com paralisia cerebral... quando disse que os motoqueiros brasileiros criaram um sistema unilateral de trânsito no qual o motoqueiro é sempre a vítima em qualquer incidente em que se meter... quando disse que o Pelé, que os brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira fazem tanta questão de dizer que é melhor que o Maradona, era tratado como um idiota fanfarrão tanto pela imprensa quanto pela opinião pública... porém, quando disse que há um certo grupo de brasileiros que afirmam que a arquitetura do Recife é igual a de Buenos Aires e que Puerto Madero é insignificante em comparação ao “bem cuidado” nordeste brasileiro, eles ficaram putos da vida, “más que boludo, más que boludo, maricón, hirro de la puta, traga las madres desses boludos...
A prova contundente de que o Brasil é um país de merda, suficiente para encerrar qualquer discussão com qualquer horda de brasileiros culturalmente confortáveis com a cultura brasileira, é que, atualmente, OS NOSSOS MAIORES POPSTARS SÃO PADRES!
Um comentário:
hummm... Divertido! Reconheço-me em vários dos aspectos criticados, e eu diria que alguns deles não seriam tão criticáveis depois de um certo tempo fora do Brasil... Não estou de maneira nenhuma confortável com nossa cultura, mas acho que há muita coisa muito boa à qual precisamos nos agarrar depois da saudade... Enfim, os textos estão ficando cada vez melhores! Acompanho sempre...
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